Fábula cotidiana

Acabei de ver a dona aranha praticando um ato homicida. A vítima? Uma formiga tonta que passava distraída pela esquina da parede. Ação rápida e prática. Em segundos, a presa se contorcia por inteira, e a dona aranha, toda faceira, produzia calmamente a teia do golpe fatal.

Desliguei a TV que noticiava sei lá o que e passei a observar mais atenta o passo a passo do flagrante delito. Em fração de segundos a formiguinha (que Deus a tenha) estava lá, envenenada, esguichando a breve vida entre as pernas frenéticas que se fechavam em volta do corpo.

Entendo pouco sobre biologia, mas sou boa na arte da observação. Fissurada, acompanhei a movimentação da dona aranha que subia pela parede, mas sem a chuva forte da musiquinha infantil para derrubar.

Havia lido, certa vez, que as formigas são insetos “altamente organizados”, sendo considerados o grupo de animais de maior sucesso ecológico do planeta. Balela. Vocês precisavam ver a dona aranha na cena do crime. Organizadíssima, naquele grau superlativo sintético que a gente adora. Rapidamente, tratou de imobilizar a formiga, depois esbanjou habilidades de teia e, pluft, a coitada da formiga estava lá, embalsamada, mumificada, na cidade das “pernas” juntas – péssima piada por sinal.

Alguém foi feliz naquela noite. E alguém foi infeliz. Culpa da destreza aracnídea ou da distração da dona formiguinha? Será que existe um banco dos réus no mundo dos insetos ou o instinto de sobrevivência é um vale-álibi para situações conflitantes como a descrita outrora?

Teci então a minha teia de questionamentos póstumos. A dona aranha estava no lugar certo, na hora certa ou a formiguinha que passava no lugar errado, na hora errada? Acaso aparente ou destino certeiro, estavam as duas lá, caçadora e presa, denotando o que conhecemos como “cadeia alimentar”.

Você deve me achar louca por dissertar sobre uma coisa tão trivial. Talvez até seja. É isso que os cronistas/escritores/curiosos fazem (ou o que pelo menos deveriam fazer) em situações “inusitadas”.

A vida é feita de oportunidades, amigos. Situações que surgem naturalmente ou que criamos ao nosso bel-prazer explicam o pretérito e induzem o presente e o futuro.

E se eu te disser que somos aquela aranha? Sim, somos sim. Estamos sempre à tocaia de algumas situações insatisfatórias à espera do ataque abrupto, dando voz aos impulsos do ID e causando surpresa nas formiguinhas que compõem o nosso ciclo social. Mas, leia-me, é possível que também sejamos a caça.

Existem outras aranhas astutas, em constante vigilância, no que cerne às nossas rotinas. Elas conhecem as fraquezas, uma a uma, e sabem por onde andamos. E nós sabemos disso. Por isso que temos a autodefesa, somos desconfiados e apressamos os passos sempre que é necessário.

É paradoxal assumir dois postos, mas é possível e aceitável. E eu nem sou tão louca assim. Há veracidade e sentido nesse discurso.

A essa hora, a dona aranha está alimentada e pronta para a próxima caçada, pois como foi dito anteriormente, a vida é feita de oportunidades.

Só esqueci de avisar que vi também uma lagartixa, inquilina da minha sala, à espreita, no canto direito do teto. Peço ajuda aos universitários para a última indagação da prosa, mas nessa essa rotina cíclica, em que momento o algoz transforma-se em padecente?

(...)

Eles que lutem. Elas também.

Lívia Couto
Enviado por Lívia Couto em 02/12/2019
Reeditado em 02/12/2019
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