Brasília: como se fosse um decreto

Como se fosse um decreto, a vida da cidade projetada para abrigar todos os sonhos, a menina dos olhos de JK, por alguma razão misteriosa, parece se organizar da seguinte maneira:

Cada macaco deverá ficar de hoje em diante no seu respectivo galho. Assim como cada funcionário público na sua devida repartição. Cada arquivo, cada traça, cada inquérito, cada Projeto de Lei trancafiado em sua determinada gaveta. Cada indignação no seu devido consentimento. Cada chefe de gabinete - e seu burocrático senso de humor - na sua impecável e admirável administração. Cada caso de nepotismo, de mentira, de falácia, de corrupção: incorporado na rotina normal das relações públicas.

Cada entre-quadra no seu devido bloco. Cada bloco na sua respectiva superquadra. Cada superquadra na sua respectiva Asa. Cada Asa acoplada ao seu determinado Eixo. Cada Asa no seu determinado Plano-Piloto. Cada Eduardo e cada Mônica no seu respectivo Parque da Cidade. Cada Léo e cada Bia no seu devido barzinho da 408/Norte. Cada lote e cada condomínio dos arredores na sua autorizada ilegalidade. Cada compromisso ambiental no seu devido esquecimento. Cada choro de angustia isolado no seu determinado apartamento. Cada depressão, cada mágoa, cada raiva reprimida no seu devido quarto da 604/Sul. Cada paciência esgotada no seu respectivo ponto de ônibus.

Cada grileiro de terra na sua intocável imunidade parlamentar. Cada noticiário, cada (dês) informação, cada espetáculo no seu respectivo Correio Braziliense. No seu devido DF-TV. Cada criança no seu respectivo apartamento fechado da 405 da L2/Sul. Cada cidade satélite o mais distante que puder da Capital Federal. Cada pastel (de carne ou de queijo?) na sua respectiva Rodoviária. Cada frieza em sua respectiva troca de olhar, na sua respectiva forma de ser. Cada esmolinha, cada coração partido, sensibilizado, amolecido na sua respectiva viagem de ônibus.

Cada ofício de estima e bajulação ao Meritíssimo Sr.Juiz na sua respectiva vara criminal, na sua devida jurisdição. Cada apreciação estética e poética no seu devido horário e local de acontecimento. Cada flor dos canteiros do Setor Hoteleiro na sua dada artificialidade. Cada flor de Ipê no seu restrito e desprezado significado público. Cada estudante da UNB apático e distante na sua respectiva vaga da faculdade. Cada conceito de democracia restrito no seu estimado livro de contos de fadas. Cada espontaneidade no seu respectivo dicionário.

Cada professor na sua solitária luta por isonomia salarial. Cada pagamento de IPTU, IPVA no seu respectivo mês. Cada faxineiro, jornaleiro, motorista, gari e operário na sua estimada invisibilidade. Cada valor ético compreendido no restrito âmbito de seus bichos do cerrado. Cada parafuso na sua respectiva engrenagem. Cada absurdo na sua respectiva lógica. Cada lágrima contida no seu devido ritmo racional. Cada preocupação dirigida exclusivamente à prosperidade do ambiente doméstico. Cada um cuidando da sua vida. Cada um na sua, na sua lógica: um contra todos e todos contra um.

- Viva Brasília! Viva a capital dos meus sonhos! Viva a cidade que não me ama, mas por quem morreria de amor.

Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 05/10/2007
Reeditado em 14/01/2009
Código do texto: T681161