Comigo no Quarto

Por alguma razão, cujo fenômeno a própria ciência desconhece, me deparei comigo mesmo, uns quarenta anos mais velho, sentado em minha cama. Ele, ou esse "eu" que ali se encontrava, lia despreocupadamente alguma coisa que não sei o que era: se a Bíblia, O Capital, um livro de literatura ou culinária, não poderia saber. Talvez, dado o tamanho e o formato, fosse Dom Quixote, meu livro de cabeceira que muito provavelmente continuará sendo meu livro mais estimado.

O fato é que era muito estranho.

Envolvido num misto de medo e curiosidade, me aproximei cauteloso - e antes que completasse um passo me assustei com uma pergunta inesperada:

- O que está fazendo aqui?

- Eu? - perguntei ainda tomado pelo susto.

- É claro que é você - me lançou seu olhar, que parecia incomodado com alguma coisa, talvez com minha presença:

- Quem mais seria, tem mais alguém nesse quarto a não ser você?

- Não senhor. Mas acontece que esse quarto...

- Não me chame de senhor!

- Então lhe chamo de que?

- Me chame de você. Não entendeu? Eu sou você com uns sessenta anos. Caiu a ficha?

Dito isto, silenciou por um instante e continuou sua leitura.

Amedrontado, e sem entender o que se passava, deu-me de querer lhe observar a fisionomia. No entanto, por alguma razão, não conseguia enxergar suas formas, aliás, as minhas formas de quarenta anos depois. Se acaso era de feição mais rechonchuda ou mais magra, se era bem mais alto, se estava mais isso ou aquilo, não poderia saber. Às vezes parecia calvo, outras, cabeludo.

Naquele momento me senti incapaz de organizar o caos que se apresentava. A vertigem que se dizia como suposto eu do futuro, não tinha forma, não tinha cheiro e não tinha cor definida. Mas a mudança em sua fisionomia não era brusca, explícita como a luz. Antes era preguiçosa como a nuvem que se dissipa; não como o ponteiro que marca os segundos no relógio, mas como o ponteiro que marca as horas.

Vez por outra, variando a minha perspectiva, lhe percebia uma barba de tamanho considerável. Na barriga, vez em quando, lhe surgia uma ligeira protuberância - talvez conseqüência da cerveja que costumo beber com os amigos sempre que me surge uma oportunidade.

Quanto a seus trajes: às vezes parecia estar vestido com algum paletó de cor escura; outras vezes, com uma camisa clara com listas azuis na horizontal, e outras vezes parecia sujo. Nada era preciso em suas formas, tudo era vago e possível. E isso me incomodava. Senti a necessidade de perguntar como serei daqui a quarenta anos.

Para minha surpresa ele respondeu irritado:

- Como você será? E você pergunta isso para mim? Vá caçar o que fazer, moleque!

- Como assim? Não estou entendendo nada.

- Não está entendendo nada porque pensa demais e age muito pouco. Se agisse em vez de ficar se perguntando, talvez soubesse.

Fiquei irritado - ora mais, quem esse velho pensa que é?

Ele continuou:

- O que está fazendo parado aí? O que já fez hoje?

- Hoje fui ao cursinho. Almocei. Descansei um pouco e estudei durante algumas horas. Depois dei um volta na rua com meu cachorro. Tornei a descansar. Mais tarde, lá para as cinco horas, fiquei escutando Chico e Milton Nascimento. E depois aproveitei o tempo disponível e escrevi algumas coisinhas.

- Só isso?

- É. Só isso. Mas lá para o meio da tarde fiquei sentado no quintal, pensando na vida, sabe?

- Pensando na vida ou contemplando as deformidades da parede descascada do seu quintal?

Soltei um riso meio sem graça, e procurando simpatia respondi que eram as duas coisas. Ele mostrou-se sério. Encaramo-nos. Abriu-se um silêncio irritante, quase infindável. Ele acabou se resignando novamente à leitura. Ao redor percebi que o armário, a cama, a cortina e a parede fechavam-se, graves, como se fosse um enigma.

Nesse meio tempo procurei assimilar esse acontecimento tão inusitado. Oras, por que estaria aquele "eu" ali, naquele quarto, me enchendo o saco? Enquanto ele se envolvia na leitura daquele livro tão interessante, fiquei procurando uma resposta - e procurei. Mas a única coisa que consegui perceber naquele momento foram duas coisas: o enorme espaço de tempo que nos separava, e no elo que nos mantinha unidos - para ele, a embaçada memória do que foi um dia; para mim, a caótica especulação do que serei.

Ele mais uma vez rompeu o silêncio:

- Quem é você nessa vida? Vamos, responda.

- ...

- Não sabe! Está vendo.

Nesse momento me vem um verso do Fernando Pessoa que se encaixou como uma luva para minha resposta:

- Sou um louco, com todo direito a sê-lo, ouviu?

- Tá. Chega de literatice! Tenho mais o que fazer a ficar ouvindo tuas bobagens. Por que não me deu uma resposta mais autêntica. Até quando vai ficar escorando sua carência de idéias nas idéias de outros?

O maldito acabou comigo. Com essa resposta me deu um bandão violento. Mas deixa ele, isso não ficaria assim. Ele ainda continuou com sua série de perguntas irrespondíveis. Perguntas que colocariam o próprio Aristóteles de joelhos:

- O que você quer da vida, vamos, fale?

- Eu não sei...

- Não sabe e não faz nada para ficar sabendo. Você me apronta cada uma. Por que não vai estudar? O vestibular está aí.

- Eu já estudei. Mas não se preocupa não, porque no final da noite, lá para as sete horas, estudo mais.

- Você devia estudar umas doze horas por dia, no mínimo. Não vê o exemplo do seu pai, que trabalha durante dezesseis horas por dia, naquele trânsito louco, engolindo fumaça e desaforo de passageiro? Não vê sua mãe, tão dedicada para mantê-lo nos estudos? Nesse teu ritmo num sei não, meu caro. Olha lá o que você vai fazer de mim, em!

Ele me intimidou. Acabou falando tudo aquilo que mais vem me preocupando ultimamente: o diabo do vestibular!

- Veja só rapaz... Você sabe que eu estou falando isso pelo seu bem.

Mentira dele. É óbvio que ele depende de mim, das minhas decisões de agora. Se eu fracassar, ele é quem arcará com as conseqüências. Caso contrário, se eu me decidir corretamente, ele é quem se dará bem. Quanto a mim, preciso ser o cordeirinho que deve se sacrificar hoje, para ele não ser o cordeirinho de amanhã. Ele é muito astuto, muito esperto, estava é pensando no coro dele. Ele deve ser uma daquelas raposas do Monteiro Lobato, no mínimo; mas eu não sou besta não. O grande problema é que amanhã eu serei ele, de modo que serei eu é quem sentirei as conseqüências das minhas decisões de hoje.

Nossa, mas que confusão! Sinto-me lançado numa encruzilhada de infinitos caminhos e não sei para onde ir.

Nessas alturas ele me cita o Drummond:

- Tem uma pedra no meio do caminho! - e sorri.

- Não vi graça e sentido nenhum para você ter citado o Drummond.

- Um dia vai entender. Mas agora vem cá, segure na minha mão.

- O que você pretende? - hesitei - mas, mesmo hesitando, acabei por lhe apertar a mão. Contudo, era muito estranha a textura: ora parecia calejada, ora parecia macia. Era muita loucura, só poderia estar sonhando.

Mas não estava não. Estava acordadíssimo, e mais do que nunca lúcido.

Ele propôs que eu lhe colocasse em minhas costas:

- Você está louco? Pra quê?

- Você vai entender. Agora vamos, me coloque em suas costas.

- Mas você é pesado, não sei se consigo.

- Deixe de frescura, sua jaguatirica!

Dito isto, pôs o livro em baixo do travesseiro e insistiu que eu lhe colocasse sobre minhas costas. E mesmo a contragosto acabei por fazê-lo. Nesse momento, me senti como se estivesse erguendo uma cruz.

Cambaleei como se fosse um bêbado.

- Opa. Olha lá. Não vai me deixar cair, ouviu?

- Mas você é muito pesado! - me queixei.

- Eu sei. Mas saiba que meu peso é medido conforme a sua força de vontade.

Protestei:

- Porque não fala de modo que eu te entenda?

- Quer que eu te diga algo que tu entenda?

- Sim.

- Cale a boca, caso contrário te desço um cascudo. Agora entendeu, sua toupeira?

Enfezado, pensei em jogá-lo no chão. Assim me livraria de uma vez por todas disso. Ele, como se estivesse lendo meus pensamentos, aconselhou:

- Queres te livrar do meu peso? É fácil. Para isso basta subir num edifício, ou tomar uma faca da gaveta lá na cozinha. Ah, quase me esqueço! Tem também o varal de roupas no quintal. Bem, o resto você sabe. Não é meu amiguinho?

Sua ironia me chocou - ele prosseguiu:

- Eu queria vê-lo feliz, mas, infelizmente, já não posso fazer nada. Mas você me permite lhe dar só mais um conselho?

Meio ressabiado respondi que podia.

- Ame! Ame as pessoas. Sua mãe, seu pai, seus irmãos, seus amigos. Mas ame com vontade. Com urgência, mas com uma urgência serena. Ame com força, mas com força delicada. Ame com todo amor que existe no seu peito, mas...

Estranhei:

- Mas porque você me diz isso?

- Por que hoje, meu caro, nem todas que te acompanham estão comigo.

- E para onde foram?

- Alguns viajaram; outros, pouco a pouco, se tornaram distantes. E alguns se foram para sempre...

- Por quê?

- Por que! Acho que você já está perguntando demais. Agora é preciso que viajemos.

- Como assim?

- A partir de hoje você tem por obrigação me carregar em suas costas. Não importa o quanto eu peso, o que importa é o quanto você pode. Entendeu?

- Não.

- Então entenda, e será livre.

Enfezei-me e procurei provocá-lo:

- Porque você não desce dessa montanha, ô senhor sábio?

- Quer saber o porquê? Eu vou responder: porque não há montanha, estou sobre você.

- Não se faça de sonso, você entendeu.

Onde acabaria aquela conversa. Eu só poderia estar louco, pensei. Há dias que venho procurando uma resposta e me vem esse sujeito aqui, se fazendo de mim, me dizendo um monte de lorota. Realmente essa vida não é para principiantes.

Estou terminando esse testemunho e juro por minha mãe durinha no chão que o que foi escrito acima não é só uma estória pra boi dormir, é, antes, a confissão precipitada de um menino. Posso assegurar que minhas costas doem, que já pensei em largar esse parasita no chão. Até mesmo simular um enfarto já pensei.

O varal, o edifício, a faca na gaveta, são hipóteses precárias, mas são hipóteses. Esse cara sobre minhas costas é uma cruz, está me torrando o saco, de modo que não sei nem como acabar com isso que estou escrevendo. Mas de qualquer modo tenho que terminar isso agora, antes que fique chato demais.

E o homem apoiado nos meus ombros parece querer dizer alguma coisa:

- Isso não é apenas a confissão precipitada de um menino, é antes, e principalmente, uma estória para boi dormir – agora deixe de conversa fiada, desligue esse treco e vamos caminhando; e num se queixe não, que eu não saio das tuas costas enquanto tu num virar um homem de verdade.

A mim restou-me a resignação e a incerteza. Toquei o pé na estrada e agora sigo, sem saber aonde essa estória vai terminar.

***

Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 05/10/2007
Reeditado em 06/09/2010
Código do texto: T681169