O marujo que quis ver demais

Aquela secular Unidade de Ensino estava em regime de viagem, ou seja, contenção premente de gastos.

É que o desastrado do Comandante, e apesar de suas “boas intenções”, resolveu levar o ar puro, característico de a farda militar, para os pisos de corredores e de áreas. Cismou de trocar a tradicional cerâmica colonial avermelhada por uma de cores mais brandas.

Não deu outra: A obra foi concluída, mas consumiu praticamente toda economia orçada para aquele ano da Caserna. O que o levou, dentre outros cortes, a “inventar” novos tipos de cardápios para a tripulação. A mais famosa delas foi o novo modelo de dobradinha, por só ter de origem animal o bucho.

Mas a problemática da alimentação não parou por aí. Estava ficando tão crítica que metade da quantidade de doce, que normalmente era usada para sobremesa do almoço, estava sendo fatiado de modo que desse para toda guarnição.

Certo dia um marinheiro, sentado a uma das mesas do refeitório, começou a gritar por socorro e o sargento Mestre D’armas (responsável pela cozinha) correu a acudi-lo.

- Que está acontecendo, marujo? Que você está sentindo? Indagou o sargento preocupado.

- Sinto que estou cego, sargento.

- Como assim?

- Não estou enxergando minha sobremesa. (A fatia de doce era tão fina que se via o fundo da bandeja).

- Ah é! Pois vou mandá-lo para um lugar muito bom para convalescença.

A praça fora recolhida alguns dias ao xadrez, por insubordinação.

Passado os dias de prisão do marinheiro insubordinado, fora mandado aumentar a ductilidade (capacidade de se poder reduzir à lâmina finíssima) do doce feito pelo mestre cuca (cozinheiro), para verificação da “vista” do reclamante; se a mesma já havia melhorado.

Naquele dia o subalterno sentou-se calmamente à mesa e começou a almoçar, sem esparrela.

O sargento rancheiro se aproximou sorrateiro por trás dele e perguntou:

- Já melhorou da vista, jovem?

- Sim, Senhor. Está otimamente bem...

Enquanto falava, o marujo ia tirando cuidadosamente o doce colado no fundo da bandeja, pegando nos seus extremos, o levantando na vertical, fitando o sargento através da transparência da lâmina e complementando: Eu até o estou vendo através da minha sobremesa, chefe.

O marujo saiu dali para quarar mais uma vez na cadeia.

Desta vez por estar querendo “ver demais”.

Edmilson N Soares
Enviado por Edmilson N Soares em 16/12/2019
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