O CADERNINHO AZUL

Estava para fazer isso há muito tempo, mas por esquecimento ou auto-boicote não fiz. Hoje tomei vergonha, me concentrei na necessidade e concretizei o feito que já deveria ter feito… e pensar que tantas coisas passaram por mim e foram embora sem deixar rastros por causa disso. Por não ter feito. Hoje poderiam estar aqui nos distraindo, ou melhor, pelo menos distraindo a mim, que escrevo. Mas, fato é que, por causa desse desleixo, elas se foram e, ainda por cima, para sempre e, por mais que a memória seja boa, tão distantes já estão que nem vejo as pistas, nem suas pegadas, delas não há mais nada.

Se o mistério destas coisas aguçou porventura a curiosidade do leitor, não vou estendê-lo por ainda mais tempo, apesar do risco de saber que, após isso, a revelação, poderei ter que lidar com os mais variados sentimentos, da solidariedade à raiva, passando pela graça ou o descontentamento. O fato é que….

Comprei um caderninho azul carismático.

Ele é do tamanho exato que procurava, cabe nas bolsas e na mochila que uso. Não é pesado e tem um discreto elástico que o mantém fechado, o que sutilmente cobra de quem o encontrar um sigiloso respeito. Era o que eu procurava. A capa lisa não te influencia em tendências, nem deixa marca. Qual a dimensão deste simples ato na minha vida e, principalmente, qual a relevância disso para estar ocupando já o quarto parágrafo dese texto? Para mim, muita.

E para você que pensa que exagero, explicarei em detalhes. É que ando por aqui e ali atenta. Quase sempre com um livro nas mãos e todos esses quase sempre, me sento para ler num ambiente público aconchegante e algo acontece à minha imaginação. Então, entre uma página do livro e uma olhada em torno, entre uma pessoa e um recanto na paisagem, enquanto sento, leio, olho e respiro, nesse vai e vem dos olhos, me vem pensamentos que serão de interesse futuro para eu explorar e ali, naquele momento, junto, vem o arrependimento de não ter um papel, um caderninho onde o guardar. São elementos únicos, às vezes fórmulas inteiras, sinais intuitivos que se não são guardados na hora, fogem para nunca mais voltar perdidos no labirinto do meu laboratório de inspirações.

Então agora FIZ, comprei e tenho um caderninho onde escrever.

Desculpa então se foi uma desilusão, um ato falho, mas para mim é relevante. Talvez quem sabe um dia passe por algo semelhante para poder entender e voltará aqui para reler.

Por isso estou contente.

Por que não o fiz antes? Qual a dificuldade que tinha de comprar esse caderninho, afinal? Aí vem algo que a psicologia certamente saberá explicar, mas eu não. Posso tentar dizer que não encontrava um com o tamanho que queria, o peso, a capa apropriada… como também posso dizer que, apesar de pequeno, seria um gasto desnecessário para o momento. afinal, umas folhas de A4 colocadas na mochila poderiam resultar para o mesmo intento. Engano, puro engano. Não é um caderno: folhas coesas, entrelaçadas por uma grossa tira para não as soltar, trabalham numa mesma função, para uma mesma matéria. Um caderno não é apenas um lugar para escrevinhar, é instrumento de trabalho, um companheiro de estrada, vai onde vou, guarda meus pensamentos, passa a ter feição da gente e a gente se afeiçoa à ele, reconhecendo-nos na sua cara.

E essa, é de um tom azul carismático.

Sê bem-vindo!

Kawer
Enviado por Kawer em 20/12/2019
Reeditado em 17/01/2020
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