Flores roxas

Há um corpo caído no chão, alguns homens o chutam, agridem-no de forma que já é possível ver, já é possível sentir as manchas de cor roxa que tomam a pele como se fossem flores do futuro velório querendo brotar ali mesmo e a pele a insistir em não as deixar passar.

Meu Deus! Eu sinto prazer em ver esse corpo, pois é o meu corpo que que está caído no chão. Nesse instante olho em volto e lembro-me de que estou no ônibus, não, eu estou quase a ponto de entrar no ônibus em uma fila sem sentir de fato qualquer coisa. O que me machuca é rotina. De forma que o prazer que me vem é esse: o de sentir que me agridem como se eu carregasse alguma culpa pelo simples fato de existir.

Eu devia era não pensar em nada, que é o que se espera de todos nós, ceder a simples vontade retornar apenas sã e salvo para casa, após um dia de trabalho. Era o que se notava no rosto de todos que estavam ali.

Se alguém me notasse saberia que eu não estava bem, mas eu não podia ser descoberto sob risco de expor essas flores de cor roxa que carrego na alma.

Ninguém quer vê-las, ninguém as quer encarar, pois assim é como se elas não existissem dentro de cada um. Não os culpo, eu sou uma falha no jogo, apenas isso.

Estou cansado de mim e pensar torna o mundo tão mais confuso. Eu devia sim era ceder e abraçar os movimentos repetitivos para talvez fugir do abismo que há em mim.

Às vezes, já me peguei andando por uma rua qualquer a imaginar que meu corpo acaba de ser atingido por um carro como se eu fosse seu alvo. Nesses momentos eu posso sentir esse carro livrando meu corpo de todo peso e eu me sinto leve.

Eu não giro para o alto como uma estrela, apenas absorvo o impacto e sinto. Não há esperança alguma! Nesse momento eu deixo de ser eu e sou apenas um corpo.

Arqueio o peito expulsando o ar, num esforço ancestral ainda que automático, e miro a paisagem em minha volta como quando meu olhar deu de encontro às pessoas daquela fila. São poucas pessoas, mas já me roubam o ar.

Mas eu continuo a cruzar a faixa de pedestres, a esperar minha vez de entrar no ônibus, descer e subir a ladeira que me leva para casa.

Sérgio da Luz
Enviado por Sérgio da Luz em 21/12/2019
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