Na-tal

Então é Natal.

Supermercados lotados, lojas abarrotadas, filas e mais filas de espera. O caos.

“Pior dia para vir à feira.” – pensei. Depois de 30 minutos em pé, finalmente seria a próxima pessoa a ser atendida pela mocinha mal-humorada do caixa número 38.

A cliente da vez era uma senhora forte, acompanhada do marido um pouco mais franzino. Ela fazia queixas infindas. Tentou papear comigo por alguns momentos durante a longa espera. “Uma demora, não é?” – Sim, sim. Retrucava instintiva e educadamente. Nós duas queríamos apenas uma coisa: passar as compras, driblar o tumulto e chegar em casa.

Essa mulher tagarelava como um motor de carro velho. Um ruído chato, inquietante. Procurei os fones de ouvido entre as divisórias da minha bolsa. “Putz! Não acredito que esqueci em casa...”

Frustrada com a ausência dos meus amiguinhos antissociais, não pude deixar de acompanhar toda aquela movimentação de vozes entre ela e o marido (que mal falava, apenas fazia cosplay de lagartixa, sempre balançando a cabeça em sinal de concordância).

“Tem que pegar mais dois refrigerantes, Manuel. Sua irmã vai levar a creche inteira, seus sobrinhos comem e bebem demais. E dois quilos de arroz é pouco pra tanta gente...”

Logo entendi sobre o que se tratava o cavaqueado todo, a tão esperada (ou não) ceia de Natal.

Dois anos no curso (abandonado) de psicologia me fizeram ler a situação pela abordagem Behaviorista. Skinner tinha razão, os estímulos observáveis e as respostas produzidas pelos falantes/personagens daquela situação específica diziam muito mais que qualquer introspecção Freudiana – os psicanalistas que me perdoem a franqueza da opinião.

Seguia acompanhando o curso da conversa - não me julgue por ser essa curiosa nata, estava num ócio espantoso e, como uma boa observadora que sou, tratei de direcionar o foco para algo que me causasse o mínimo de distração possível. Nesses 30 minutos conheci a família inteira. Fiquei sabendo dos irmãos, dos sobrinhos e dos agregados. Pelo carrinho de compras que agora já começava a esvaziar na esteira do caixa, medi o investimento que causava tanto desconforto. E fiz também minhas inferências, como de costume.

Viva o espírito natalino e os adventos causados por uma noite simbólica que visa uma breve aproximação num ano inteiro de descontentamento e separação. Viva o Natal!

Aquela mulher não parava de blasfemar sobre o encontro noturno da festa cristã. E eu pensava no sacrilégio ao nascimento de Cristo em meio a insatisfação da tia do carrinho atulhado de comidas e bebidas caras. Deveria ser festa, não fardo.

Por fim, a compra foi concluída. A nota fiscal dava umas 3 voltas. Olhei para aquela senhora que acenava para mim em partida, com um ar de “ufa, finalmente vou embora” e retribuí o aceno com um “feliz natal” e um sorriso contido. Ela seguia murmurando com o pobre do marido, coitado. Pés que seguiam no mesmo descompasso de uma boca nervosa e raivosa.

Pus então na esteira meus cereais, minhas frutinhas e alguns produtos de limpeza. Não havia champanhe ou panetone ou chester ou sei lá o quê que se coloca na mesa de Natal. Não me faltava nada. Compras agora só no próximo ano... e para o Natal, nada em específico. Apenas a reflexão de uma data cristã/comercial e o blábláblá minimalista que vocês já sabem de cor.

Paguei, saí do supermercado e não mais avistei a minha colega de compras. Provavelmente seguia reclamando em outra rua.

Desejo-lhe uma noite Natalina de paz, com fartura na mesa e satisfação em ter a maior das farturas: a companhia dos entes queridos arrumados, perfumados e famintos.

Aqui, sigo a programação normal de todos os dias cristãos e pagãos. Pois como outrora disse o meu amigo Saramago: “Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros e que, para a maioria, é só um dia mais.”

Um feliz Natal para quem do Natal for. Aos demais, apenas um feliz. Seja o que for, que seja feliz.

Lívia Couto
Enviado por Lívia Couto em 23/12/2019
Reeditado em 24/12/2019
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