De como um anunciado milagre gorou

Capítulo 15

De como um anunciado milagre gorou

O melhor é não cutucar onça com vara curta. Dito e feito. O Malaquias prometia milagres. Ele dizia: “É de tirar o chapéu, faço e aconteço”. Milagre. Esta é uma palavra que atrai atenções e sabemos que não é de hoje. Parece que todo mundo quer uma garantia de que algo do sobrenatural vai lhe favorecer de alguma forma, em algum momento. Está na alma de nosso povo, acho que de todos s povos. E o branquicento do Malaquias se aproveitava disso. Floresceu o Malaquias nesta esteira. Floresceu, cresceu e se esparramou. Mas para logo deu com os burros n´água. Trombou com o delega, com a autoridade policial. Minhoca esperta não atravessa galinheiro. Quem dera o sapateiro só fizesse sapatos. Mexeu no vespeiro, saiu ferroado.

Deu-se mal. O delegado Nadir nunca estava para brincadeiras. Mala prometia isto, prometia aquilo, e de vez em quando dava certo, de vez em quando não. Meio que por acaso, e meio que por acaso. O delegado, lógico, cuidava de crimes, de delitos, de ocorrências que ofendessem um bem jurídico, de falcatruas, de infrações ao Código Penal, pois sabemos que não existe crime se não houver transgressão de uma norma. Está lá no capítulo de culpabilidade do Código Penal. Malaquias, o malaco, sabia disso e andava pianinho. Mas se aproveitava dos incautos, dos excessivamente pios. Havia alguma coisa que estava errada e que não estava certa. O homem tirava mel do pacote de sal. Apesar de o feiticeirozinho de algibeira não querer problemas, fazer tudo às furtadelas, onde há fumaça há fogo. O hábito do cachimbo faz a boca torta. Por isto e por aquilo... um dia o caminho dos dois se cruzou. E foi assim:

Vou contar do início, assim se entende melhor o entrevero. Meu pai, que não queria nada com nada destes troços de sobrenatural, havia comentado com o Nadir, em si – “O Malaquias me disse que se eu arranjasse para ele cinquenta cruzeiros (50 mil réis), ele faria um trabalho para o Terra Boa vencer domingo”. Para domingo estava marcada a decisão das decisões. Seria campeão do torneio Getúlio Dornelles Vargas quem vencesse a partida. Ou terra Boa ou o Clube de Regatas Jussara (nome dado em homenagem ao Flamengo, pois não havia regatas em Jussara, pelo menos na época, apesar que ainda hoje não existe). Só que meu pai não aceitou a oferta, mesmo porque não punha nenhuma fé no Malaco, digo, Malaquias. O delega ficou de antena ligada. Parece que pressentia um algo qualquer. Não deu outra. O assunto não progrediu, e não ia progredir. Morreu ali, mas...

Eis senão quando, um sitiante, trabalhador esforçado, mãos calejadas, olhar sofrido, nosso compadre, quer dizer, compadre do meu pai, veio se queixar ao delegado. Tinha arranjado 100 cruzeiros (cem mil réis) para o duvidoso Mala. Com muito esforço, com muito sacrifício. Porfírio acreditou no sulino do sul. Ofertou mundos e fundos, um porquinho, uma cabrinha, além dos 100 pilas, para que fosse feito um trabalho, no caso, uma catiça, uma simpatia, para que sua filha, a Rosinha, arranjasse um marido, ou pelo menos um noivo, ou pelo menos, um namorado. Um ano depois, nada. Foi o tom, dali nasceu a música.

“Errou o bote”, disse o sargento, o capitão, o tenente. “Esse porqueira vai acertar conta comigo”. Dois praças foram buscá-lo. Trouxeram o indivíduo meio vexado, meio de má vontade, mas trouxeram.

A partir daí, o diálogo foi tenso, comprido, meio torto. Sem violência, concordo, mas com muita energia no ar – energia de coisa errada solta. Dois bicudos não se beijam.

O problema já começou que o Malaquias estava chumbeado na asa (alto, embriagado, de porre), mas muito arisco, muito cheio de nove horas, atilado.

– Vamos lá, meu amigo (tom amistoso), você falou para o Barbosa que vai fazer um trabalho para o Terra Boa ganhar do Jussara domingo e ser campeão da taça Getúlio. É isto? “Sem tirar nem pôr” – disse o interrogado. Resposta afirmativa.

– Quantas pilas ele tem que te dar? “5 mil réis”, respondeu o maroto. O delegado replicou: “Só vou te fazer uma pergunta: Você garante a vitória do esquadrão terraboano? Assina um termo de compromisso? Se o Terra perder, 50 bolos para você. Bolo era uma maneira de descrever a doída estapeada que se dava com uma palmatória na palma da mão do querelante que faltava com a verdade, na época. Aí, a procissão parou. O homem não era doido. Doía muito uma pancada, imagine 50. O Malaquias não era de pixotear e entregar a pele para tamborim.

– Dotô, aí eu não posso prometer. Perder, perdeu.

– Mas homem, o Barbosa te dá o dinheiro, as pilas, e você não garante nada? Sabe o que isto quer dizer? Que tanto faz você mandingar ou não. Perder, perdeu. Ganhou, ganhou. Normal. A única forma de você estar sendo honesto, era se você garantisse de pés juntos. O tendel está feito. Você está só embromando.

O Malaquias branqueou. Argumentou isto, lembrou aquilo. O tempo ia passando e... o desinfeliz começou a suar, passar mal. Queria água, queria uma águinha com açúcar. Desconforto total. Aí, o negócio melindrou mais. O interrogatório seguia modernas técnicas de psicanálise, psicologia e criminologia avançada. O delega assuntou mais.

“E o seo Porfírio, quanto te deu em dinheiro, em plata? Você lhe prometeu um noivo para a filha. Nada. A menina está cheia. Sem noivo, sem marido. Nasce daqui três meses”.

– Dotô, disso não tenho culpa. Que eu posso fazer se a menina tem a cabeça leve? Há assuntos que fogem de minha humilde alçada. (Quando queria, falava um bom vernáculo, o meliante espiritual).

– Você prometeu. Pegou o dinheiro, gastou, inclusive. Nesta misturera de todo tipo de promessa que você faz as pessoas terminam se estrepando, e você belo e folgado. Diga-me uma coisa: O que é, o que é? Nunca volta, embora nunca tenha ido? O lindoso empacou. “Que que tem a ver? ” Indagou à autoridade constituída. O dotô explicou: “Raapaz, se você não sabe responder uma adivinha simples como essa, imagine se vai saber o presente, o passado e o futuro (incluindo os intervalos)”. Chamou um menino avulso. Um engraxatezinho, que sempre perambulava por ali, ganhando uns trocados: o Tiago Elias. Repetiu a pergunta para ele. A resposta veio de sem pulo: “O passado, literalmente, o passado”. À guisa de esclarecimento, o Tiago era um menino muito vivo, muito esclarecido. E em tudo que ele dizia, desde a tenra idade de seis anos, usava seu advérbio preferido: literalmente. A idade, à época do evento ora em questão, ia pelos nove ou dez. O advérbio permanecera, literalmente. O delegado mandou o falso profeta estender a mão. Plááá´ Um bolo só, mas o barato saiu caro. A mão do gajo inchou imediatamente. Vermelhona. Não é fácil não. O pouco com Deus é muito. O muito sem Deus é nada. O bicho pegou. O rapaz se contorcia de dor, chegava a gemer. E foi só um bolo.

Bom, agora vou me ater aos fatos e unicamente aos fatos. Para não correr o perigo de minha narrativa resvalar para o fantasioso, o inventado. Aquele homem, o delegado, com um nome que já despertara comentários jocosos, de maneira alguma avantajado em termos físicos, de voz, até certo ponto mansa; de olhar até certo ponto benevolente, arrisco dizer, compassivo, cresceu. Dizem as testemunhas, que tomou a forma de um arauto trombeteando, uma sentinela alertando, um profeta de olhar brilhante e voz tonitruante. Seu olhar era ira pura, raiva polida, educada, comedida, mas raiva:

“Senhor Malaquias Atílio Ribeiro. No âmago da miséria e atraso, da paralisia moral que mina nosso Brasil, que empesteia nossa nação e que avilta nossos mais caros sonhos, inviabiliza nosso futuro, está aquilo que chamo a Síndrome da Galinha Preta. O gosto do populacho, do vulgo, da plebe, do nosso povo pelo que é rasteiro, mesquinho, misterioso, no mal sentido. Esta tendência nefanda de apostar no sabugo de milho, na simpatia, no cabelo, na unha, como elementos mágicos e transcendentes, capazes de nos fazer sobrepujar as mazelas do dia a dia: dívidas, solteirice, má colheita, vizinho fofoqueiro, saúva e inimizades. Esta força negativa nos puxa para a meia noite, para a encruzilhada, para a reza enrolada, dita entredentes. Puxa-nos para a cachoeira, para a mata, para a noite de lua. É o chinelo que virado causa a morte da mãe. É o quebrar o espelho que traz sete anos de azar. É o cruzar os dedos ao ver uma estrela cadente. De crençazinha em crençazinha, vamos resvalando para baixo, para os campos lodosos da crendice popular, mente vazia, oficina do diabo. Ora, senhor Malaquias, não existe agente que propugna mais por este mal do que o benzedor de ocasião, o cartomante, o adivinho, o espertalhão, o lero-lero, ou seja, a sua pessoa. Somos um povo forte, tenaz, heroico. Veja um Machado de Assis. Este mulato – gago, epilético, filho de uma simples lavadeira, de cor negra (praticamente), não alfabetizado formalmente; à força do estudo, do trabalho, do esforço, deu-nos um Brás Cubas, um Quincas Borba, uma Capitu. Ergamo-nos: jovens, crianças, adultos e anciãos. Ergamo-nos. Ad astra per aspera, ou seja, o caminho para as estrelas é áspero. Para elevar-se: trabalho, estudo, esforço. O senhor sabe (aqui sua voz era quase um sussurro, ali, ondeava e se levantava peremptória). Somos um povo com a alta vocação de arar, trabalhar, sorrir, chorar, plantar, colher, extrair nossas riquezas, mas temos que levar a sério nossa vocação, nosso potencial, nosso destino histórico. A crença na galinha preta, no marafo, na fita amarrada, no charuto e na fita desamarrada, remete-nos a um nível elementar, primário, desdourado. É uma doença, diria peste, que nos enfraquece, nos paralisa, terceiriza nossa força moral. Sou, admito e afirmo, avesso ao despacho, aos espíritos, às entidades subalternas do folclore e das crenças. Quer crer em alguém? Não desabono a fé, mas creia só em Deus. Vou te citar Jânio Quadros e com isso fecho minha argumentação para contigo. Ele disse: “Aprendi com minha mãe, no berço, que não há homem meio honesto e meio desonesto. Ou são inteiramente honestos ou não o são”. Chega desta tua atividade baseada na perspicácia, na esperteza, na percepção apurada das nuances do caráter humano. Comigo, você não se cria. Seja homem, porque você nasceu homem. Anda reto, anda direito, ou a cobra vai fumar para cima de você”. E deu com a palmatória em cima da escrivaninha. Um dos praças – Miúdo – confessou que até ele ficou com medo.

Ato contínuo, chamou o menino Tiago, encomendou que ele fosse buscar pão e mortadela, fez um café e serviu a todos os presentes (o seo Porfírio, o meu pai, os dois praças; o Mário, Bodega; a Índia, a Inês (serventuária juramentada). O menino foi, voltou com os quitutes. Todos se serviram e todos participaram. O Malaquias, este perdera o apetite. Tomou o café.

Macaco gordo não balança o galho. Pelo sim, pelo não, o cabra se arrimou. Vou repetir: Não convém cutucar a onça com vara curta. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Santo remédio. O Malaquias virou um santo. Não no sentido estrito do termo, logicamente. Quero significar que ele arranjou um emprego de capinar terreno em torno do pé de café, colher (suas mãos ficaram em pandarecos, sangravam nos primeiros dias), separar e ensacar. Só não começou a torrar café, porque aí teria que arranjar emprego na cerealista.

A palmatória fazia milagres naquela época. Muito mais que o Malaquias.

Perguntado, como tivera a ideia de confrontar o aspirante a Nostradamus, levando-o a perder a esperança nas estrelas, nos horóscopos, na astrologia, para se dedicar ao trabalho, ao esforço, à honestidade, Nadir respondia: “Quem lava cavalo com sabonete, leva coice e perde o sabonete. Pau nesta matula”.

*Brás Cubas – personagem machadiana do audacioso e e revolucionário folhetim (novela da época) Memórias Póstumas de Brás Cubas.

*Quincas Borba – personagem de Machado de Assis. Era filósofo de uma corrente de pensamento (ficcional) chamada Humanitismo.

*Capitu – eterna personagem de Machado de Assis, mulher

de Bentinho, no romance Dom Casmurro.