O DRAMATURGO NA ALDEIA VELHA

Não tinha sido fácil congregar todos os esforços para conseguir dar à luz aquele Projeto em 1964.

-Acham mesmo que a censura vai deixar passar? – teria perguntado o jovem dramaturgo.

Filmar a adaptação de uma peça de excelente carpintaria teatral com uma acção em crescendo que atinge o climax com a morte da protagonista na fogueira , voluntariamente imolada às chamas como a Santa Joana de Bernard Shaw, aspirando a redimir assim todos os males de uma aldeia perdida no interior do país.

- Bem, talvez cortem apenas a cena erótica entre a Barbara Laage e o Rogério Paulo.Só demorou duas horas a filmar!– teria pensado o produtor executivo, o já experiente e entusiasta António da Cunha Telles.

E ao mesmo tempo apontar as armas para o obscurantismo e a ignorância que podem levar a um crime hediondo e tenebroso com rezas e exorcismos pelo meio, talvez uma saga universal que relembra Miller e “As Bruxas de Salém”que um muito jovem futuro autor teria talvez visto representar numa impressionante versão no Nacional.

Tinha sido feito um intenso trabalho de preparação incluindo o de evitar que uma eventual oposição ao filme acabasse por arruinar a Tóbis Portuguesa, quase única estrutura portuguesa de produção cinematográfica na época.

Para o realizador, o talentoso e injustamente marginalizado Manuel Guimarães “O Crime da Aldeia Velha” representava a grande oportunidade de demonstrar o seu valor impostamente desperdiçado em trabalhos publicitários e material que cedia ao discutível gosto popular.

Mas o extraordinário na produção do filme que vemos ainda hoje como uma obra séria, escorreita e bem acabada é a vontade férrea de todos os envolvidos de conseguir levá-la àvante.

Grandes actrizes tinham concordado com um júbilo nunca visto entrar no filme em papeis secundários e em alguns casos nas suas derradeiras participações no grande écran:Maria Olguim longe das comédias dos anos quarenta e espantosa no papel da bruxa mór, Maria Schultz admiravelmente convincente na sua ambiguidade de sentimentos, Gréce de Castro, Berta Fernandes e Alma Flora dobrada pela voz inconfundível de Cremilda Gil.

- Já percorri uma longa estrada muitas vezes cheia de escombros e curvas traiçoeiras – na Companhia de Maria Matos, no Teatro Nacional na fortuita mas histórica Companhia de Teatro Moderno de Lisboa, fiz “O Camarda Miussov”e “O Render dos Heróis” e para mim é um prazer muito grande contribuir de alguma forma para ajudar a estabelecer o nome de um jovem autor como Bernardo Santareno na galeria dos grandes dramaturgos de Lingua Portuguesa – declarara Maria Schultz, a veterana e belíssima actriz e professora de olhos muito azuis que interpretaria Florinda, Mãe do Padre Júlio.

Produtor e realizador tinham tido o cuidado de pedir a opinião de Santareno para o casting que pacientemente rumava sempre que possível a Monsanto, aldeia recôndita e longíncua, relativamente cerca de Castelo Branco, o cenário natural onde se rodava o filme com a colaboração voluntariosa dos seus habitantes.

- A diferença entre rodar em Portugal e em Hollywood é que para filmar uma cena lá eles fazem-no em trinta e tal takes enquanto nós temos que fazê-lo no máximo em três para não arruinarmos o orçamento – diria o realizador Jorge Brum do Canto poucos anos mais tarde ao defrontar-se com os constrangimentos financeiros que impendiam sobre o seu filme “A Cruz de Ferro”.

Santareno reforçava o trabalho de todos com uma palavra de incentivo, amável e encorajadora.

- Vai muito bem.Tal como eu imaginei a Zefa.

Deixou-se fotografar com muitas delas,Glicínia Quartim, Clara Rocha e Alma Flora nos décors naturais.

Muitas actrizes portuguesas poderiam certameente ter feito muito bem a “Joana” mas resolveu contratar-se uma actriz francesa com uma carreira promissora na esperança de facilitar a entrada no mercado além fronteiras.Maria Barroso acedeu a dobrá-la.

E apontados por Santareno lá estão magníficos no seu vigôr e pose máscula Mário Pereira e Rogério Paulo, Miguel Franco firme como Regedor e numa interpretação tocante do jovem padre, mais sensível ainda talvez do que em “Verdes Anos” a então esperança juvenil do cinema português Rui Gomes que surpreende pela vulnerabilidade e autenticidade na sequência final.

Bernardo Santareno constituia o elo afectivo de toda a equipa que em condições duras e difíceis,alojada sem grandes confortos longe de casa e durante um período infímo que roçava o impossível por razões óbvias conseguiu tecer esse exemplar único que apraz e honra o Cinema Português.

Estrear-se-ia no Éden sem grande pompa e reconhecimento com um público que acorria contrafeito, seduzido facilmente e sempre por tudo que não fosse nacional mesmo que a qualidade deixasse muito a desejar.Talvez e apenas uma atitude de rebeldia passiva face ao peso do Estado Novo.

Mas a peça original já tinha sido representada pelo Teatro Experimental do Porto numa encenação de António Pedro e foi adaptada a bailado mais tarde por Águeda Sena na estreia do Grupo Gulbenkian.

Em 1996 choveram críticas mesmo dentro da classe artística quando Carlos Avilez porventura o Diretor que além de Amélia Rey Colaço abriu mais as portas do Nacional a outros encenadores decidiu levar á cena uma grande produção de “O Crime de Aldeia Velha” como um grande clássico da Literatura Dramática Portuguesa como os espanhois fariam em relação a “A casa de Bernarda Alba” de Lorca.

O espectáculo contava com trinta e oito actores incluindo Carlos Vieira e Mónica Garnel a darem os seus primeiros passos, além da colaboração de Olga Roriz no Movimento, Carlos Zíngaro na música e José Rodrigues na Cenografia.

Na estreia, quando o director de cena instruiu o elenco a ocupar o seu lugar e se deu sinal para o início do espectáculo, grandes actrizes em papeis secundários avançaram com gravidade – a Borsatti, a Avelar e a Maya, entre outras…

E se ainda fosse vivo, Santareno decerto lhes sorriria lá de cima do segundo balcão com um solidário gesto de incentivo.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 29/12/2019
Reeditado em 30/12/2019
Código do texto: T6829706
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