CONFESSO QUE NÃO VIVI.

Na noite que passou, o sono me perdeu para Pablo Neruda. Fiquei relendo pela “milésima vez” o seu maravilhoso livro de memórias "Confesso que Vivi."

Confesso que, quando leio Pablo Neruda, fico como quem sonha. O sono não me faz falta, porque sonho acordada. Nas margens desse livro, que adquiri na década de 90 - no século passado, portanto -, junto com a primeira leitura, fui anotando à margem de cada parágrafo: "Que lindo, Pablo"!

Aqui e ali, as páginas estão salpicadas de exclamações, feitas com letra miuda e desenhada. Mas essa foi a primeira, de muitas vezes. Sempre que leio Neruda, eu não agüento sozinha, o peso de tanta emoção, de tanta ternura, de tantos mundos. Então, preciso dividir com alguém e divido com Pablo. Mesmo sabendo que ele já não está mais entre nós. Mesmo sabendo que Pablo jamais lerá o que escrevi. A cada parágrafo, aperto o livro contra o peito abraçando o poeta que se levanta do túmulo, no meu arrebatamento de leitora apaixonada.

Uma frase entre muitas me comoveu na releitura de ontem: " Assim aprendi que os cisnes não cantam quando morrem." Vejam que lindo! Pablo aprendeu, e eu aprendo com ele. Não preciso mais assistir à morte trágica de um cisne, para saber que os cisnes não cantam quando morrem. Aprendi com Pablo.

O cisne que Neruda alimentou com pão e peixe durante 20 dias, morreu, há muitos anos, aconchegado no peito do menino. Mas a morte de ontem aconteceu nos meus braços. Cada vez que leio, o cisne morre de novo. Eu o afago, beijo-lhe o longo pescoço negro e peço perdão pela selvageria dos homens que o machucaram com paus e com pedras. Eu o entrego para a morte, e enquanto ele morre, eu morro um pouco com ele.

Nunca vi um cisne negro. Mas vi Neruda, tão raro quanto um cisne negro.Vi Neruda com o seu coração encharcado de desespero, recordações, plantações, flores, bichos, gente, compaixão, amor, saudade, e infinito, tudo numa pasta zipada dentro desse pequeno ser, que já vagava pelo mundo, ainda que o mundo lhe fosse apenas do tamanho do Chile.

A Palavra é Deus e de Deus deve ter vindo a inspiração que abasteceu a poesia de Neruda, como vinda de um manancial inesgotável.

Por causa desse livro, o sábado hoje amanheceu mais terno, mais suave, mais silencioso. Por causa desse livro, preciso percorrer um longo caminho para me desprender do universo que habita essas páginas e alcançar este outro com a sua rotina, os seus sons e os seus cheiros .

Tenho que fazer o meu pão de cada dia, mas ainda não sei se algum dia nascerá em mim a vocação para fazer pão. Sempre tento, mas o pão sai do forno com o aroma da intimidade que me foi roubada por esse fazer. Entre ovos, farinha e fermento, amasso e dobro a força magnética da lembrança. A palavra não mata a minha fome de comida e, por isso, só por isso, preciso fazer pão.

Neruda foi um refugiado. Ele se refugiava, muitas vezes voluntariamente, por causa da palavra. Refugiou-se na Espanha, em Isla Negra, para escrever o seu outro livro: Canto General. Nunca li Canto General porque não consigo terminar de ler “Confesso que Vivi”. Para mim, essa obra é inconclusiva, por causa do meu deslumbramento que nunca se esgota. Mas, se me fosse dado escrever um “Canto General” seria um canto onde todos os mundos conhecessem a paz. A paz com Deus no centro. Eu destronaria o humanismo do meu Canto General e implantaria o Cristocentrismo de Jesus Cristo.

Eu nunca estive exilada. Nunca fui refugiada. Mas de certa forma, os anos me levaram e me trouxeram para outros exílios e outros refúgios, para além da Pátria. Todos deveríamos dilatar latitudes a fim de experimentar um exílio voluntário que nos permitisse escrever o nosso Canto General.

A Pátria é o o lugar da origem. No momento mais confuso da vida, voltar ao começo, deveria ter o poder mágico de apagar todas as lembranças tristes, tudo o que nos fez e ainda nos faça sofrer. Mas não temos aqui “essa Pátria permanente, esse lugar mágico e celeste, onde não haverá pranto, nem dor e nem saudades.” Temos a nacionalidade, mas não temos a posse de campos, planícies e mares isentos de guerra. Todas as nossas possessões estão manchadas pela guerra interior, que fere, que sangra, que mutila.

Estive na Espanha, em busca de uma Pátria. Lá nasceram meus pais, avós, bisavós, toda a minha árvore genealógica. Visitei grandes cidades e grandes centros culturais e turísticos. Estive em Sevilha, Granada, Madri, Barcelona e Puerto Banuz, uma espécie de paraíso litorâneo. Conheci as obras do grande arquiteto Antonio Gaudi, de inspiração gótica medieval; conheci a Casa Batlló e a Igreja da Sagrada Família, lugares projetados para chocar e depois acolher.

Conheci a modernidade e a antiguidade, o velho e o novo, o presente e o passado, tão comum nos países da Europa onde se convive lado a lado com esses dois referenciais. Mas também conheci todos os becos, e todos os “pueblos” por onde o meu povo passou, sítios que parecem ter parado no tempo. Meu pai nasceu em Hueneja, próximo de Granada. Percorri cada metro daquele pequeno povoado e pisei naquele chão pensando que o chão era meu e que os passos eram do meu saudoso pai.

Conhecendo Hueneja, conheci o lado medieval da Espanha: lugares onde a única padaria toca um pesado sino de ferro para avisar que acabou de sair uma fornada de pão quente; onde o padre da paróquia detém todos os registros civis dos cidadãos sob o seu cajado espiritual; onde o chefe do correio é uma das autoridades máximas; onde ainda se usa conservar alimentos dentro de um buraco fundo, numa parede de pedra, uma espécie de forno gelado; onde as casas têm pátios internos circulares para abrigar os seus rebanhos; onde os velhos se assentam nas calçadas vestidos de negro, com grandes olhos de espanto para os estrangeiros do lugar.

Conheci casas de pedra e gente de carne e osso. E em alguns lugares, as casas pareciam ser de carne, como as casas de Gaudi e o povo de pedra, como as inúmeras imagens de altar.

Estive em lugares tão exóticos quanto os seus nomes: Virgem Maria Del Trabuco. Alguém já conseguiu imaginar a virgem com um trabuco na mão? Pois o espanhol consegue. O espanhol tem o sagrado tão arraigado dentro da alma, que consegue divinizar um trabuco. O espanhol consegue pensar que a tourada é o símbolo da luta entre o bem e o mal. Obviamente, o bem é representado pelo toureiro, que fere, machuca, desrespeita o animal e corta-lhe a orelha sem anestesia. Mas o touro é o símbolo do mal.

Essa é a minha origem. Um povo que se flagela nas procissões em nome de Deus e que é profundamente religioso, mesmo não conhecendo que a essência de Deus é a bondade, o amor, a misericórdia, e que essas características do amor de Deus se estendem a todos os seres vivos, sejam homens ou animais.

Voltei do meu exílio desolada. Percebi que a minha genética está viva nas preferências gastronômicas, que à mesa, sou mais espanhola do que brasileira; que há em mim um certo jeito de andar, de falar, de sorrir que lembra as mulheres daquela terra; que nas expressões faciais, nas mímicas, na superfície do povo, alguma coisa veio se instalar no meu DNA. . Mas, as semelhanças acabaram aí. Não encontrei o que buscava para matar a sede, nenhuma nova Pátria surgiu da mais secreta das minhas dores. O abismo se fez ainda maior, feito de perplexidade e desalento.

Voltei da Espanha ainda mais órfão de pai, de mãe, de filho, de afetos, de pátria, de terra e de céu.

Como Abraão, como Isaque, e como Jacó, ainda estou em busca da terra prometida e confesso que ainda não avistei essa terra. Mas um dia, chegarei lá. Quando eu chegar lá, quero celebrar a vida... a vida sem a morte de cisnes negros maltratados pelos homens, a vida num mundo tão perfeito que a prosa poética de Neruda não me fará nenhuma falta.