MAIS UM MOLEQUE

Ah, ele há de chegar.

Sua mãe o espera. Ele caminha como sempre, no mesmo horário, pela estreita estradinha da pedreira, margeada pelo matagal, sob as sombras de pinheiros – é seu caminho de casa para escola, da escola para casa, dá no campinho da várzea, seu atalho que dá na ponte do córrego, no pé do morro, no escadão, na favela onde mora.

Segue em frente, moleque. Já, já tá lá.

Seu barraco é lá perto do céu, perto das nuvens – ele vê depois dos arbustos. É lá no topo onde se equilibra num pedaço de terra íngreme corroída pela erosão, como aquela micose nos dedos, que coça pra caramba, mas que se aguenta. E o vento forte esvoaça as roupas nas cercas de arame. As pipas estão sendo desbicadas no horizonte espichado. Ele então vislumbra seu lar ao longe, entre frestas, e escuta-se os sons, pássaros raros ainda ousam cantar até serem suplantados pela vozearia maleducada dos funkeiros que gritam, gesticulam demais e se auto estimam entre críticas, entre os palavrões e xingamentos que se soltam das bocas como puns fétidos em determinados trechos onde a vida parou de evoluir parece, tá raquítica e sem muita sabedoria; se perdeu bem longe dos livros didáticos, bem longe dos gabinetes, do centro, dos arranha céus em que se instalam corporações – é lá distante, nas ruas de terra desamparadas - onde os cabelos se espicham fúteis, já que não simbolizam mais luta alguma, enquanto o crime angaria os jovens e a alienação parental e social corroem almas e a milícia diz proteger – é lá no descaso todo, por onde o moleque anda agora.

Enquanto ele caminha a sonhar em chegar ao barraco, a violência rompe aos pontapés – alguém é violentado – chorume, corpos agonizando nos lixões ou mortos boiando no rio ou jogados no esgoto a céu aberto – a ausência das políticas públicas fazem crescer e avoluma o abandono e a miséria estabelecida – os dados e estatísticas apontam o desprezo – ele apenas pisou no jornal amarrotado e observa que ninguém come nada nutritivo ali, - fica nítido que não comem mesmo - só salgadinhos de isopor mesmo, nhoc, nhoc –, mas bebem e fumam, injetam demais.

E o moleque segue próximo aos que se ameaçam, se esmagam, se esfolam – bêbados estão jogados, lama, sujeira – alguém matou alguém – a polícia deu geral ali perto do bar – barulho de moto, carro, vômitos – a sirene acionada - o moleque vai caminhando, aperta o passo, receoso, tropica – ele vê e teme, apreensivo – um bandido corre – a polícia corre – o povo deserta – uma bala é disparada - o moleque é confundido – é preto também – não viram seu material escolar, só sua cor - e dá no mesmo, se parece com a imagem do que aprenderam a caçar – tem o perfil, o estereótipo - é atingido – ele mesmo viu quem foi – sua mãe lá do barraco viu também – gritou, chamou-o em vão – mais um interceptado – mais um moleque no obituário, citado na letra de rap - era mais um, enfim, que não conseguiria chegar em casa vivo para contrariar as estatísticas.

Alba Atróz
Enviado por Segredos do Orum ao Ayê no Ori em 03/01/2020
Código do texto: T6833593
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