Duas da Manhã

Chego a esta conclusão por vezes: eu habito este mundo como a um fantasma, isto é, preenchendo a carcaça das coisas com a minha. E nisto vejo certo humor e leveza, algo que carregar por aí, um adereço. Mas isto faço à noite, em percalço à minha boa vontade, jusdosando três partes de quatro com um pouco de sarcasmo. — Bem, deixo de devaneio, a mesa 30 chama; são três homens, nada de distinto neles; dois entredizem e um olha sobre o ombro enquanto lista o que desejam. Perdem-se uma porção da voz na tagarelice ambiente, outra, culpa de meus ouvidos ruins; uma porção de fritas então, "algo para beber?"; depois da mesa 23, retorno ao balcão. Aqui, fronte aos rostos, é mais fácil de existencialmente mergulhar, anoto isto arrostando os lábios, escondendo o sorriso. Teria o efeito de perdurar? — Novamente me dou distraído, rodo o salão e as mesas. Sorrio sem questão de ser falso ou simpático, talvez goste de me ir salvando a quem me olha, auscultando com certa malícia aqueles que dizem mais alto e para fora. — Aqui certa familiaridade com o discurso, noutro, a dimensão da vulgaridade me aflora os ares. Cerro de leve os olhos por cansaço, aproximar-se-ão outras horas, como de costume. Tudo conforme o esperado, monótono e confiável. Quem sabe não rompa com o rotineiro? Quiça durma eu de calças ou virado ao contracanto, pés no lugar da cabeça então. Amanhã, re-experimento o singular momento.

H Reis
Enviado por H Reis em 05/01/2020
Reeditado em 05/01/2020
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