O Presente de ser Presente

Janeiro de 2020: férias com um gostinho de nostalgia. Começo a ver um episódio do seriado mexicano “Chaves” e, em meio as risadas causadas pela galerinha da Vila, passei a observar com outros olhos dois personagens em especial.

Quem não se lembra da Dona Clotilde e do Seu Madruga? A velha "Bruxa do 71", o pai da birrenta Chiquinha e uma eterna relação de gato e rato, se é que assim posso me referir.

Sim, a Dona Clotilde é a afirmação da autopiedade: anos a fio na TV nos ensinando a não insistir no que nunca vai acontecer.

É só rebobinar algumas fitas da memória e recordar os hilários episódios que entretinham as tardes do SBT. E lá estava a Bruxa do 71, vista pelos moradores e crianças como a velha encalhada e demoníaca que ficou para “titia”.

Pobre Dona Clotilde! Seus cortejos ao velho trambiqueiro eram comuns. Comidinhas, bolos, mimos, cantadas, olhares... todos inúteis. Havia um encantamento desesperador e um desdém corriqueiro na trivialidade daquela relação.

A Bruxa do 71 morava sozinha. Aposentada, independente, dona de um animal de estimação chamado “Satanás” e sem filhos ou maiores responsabilidades. Aparentemente, uma mulher que tinha tudo para viver em “paz”, mas com um entrave: uma paixão não-correspondida no auge dos seus 50 anos.

O Seu Madruga, por sua vez, era um homem desempregado que vivia de pequenos bicos para pagar os aluguéis atrasados ao dono da Vila. Poucos atributos (ou quase nenhum) para atrair todo o amor cativo de uma mulher socialmente vista como “experiente”.

Ah, como essa história nos ensina!

Dona Clotilde é o espelho dos convites negligenciados, das ligações rejeitadas e dos tracinhos azuis do WhatsApp indicando mensagens que foram visualizadas e ignoradas. Com toda a dedicação de uma vida, a pobre mulher atuava em posição secundária na própria história de amor que tentava construir.

Quantas narrativas arrebatadoras deixamos de protagonizar enquanto insistimos em bater cheios de gracejos na porta errada, sabendo que o que idealizamos nunca nos atenderá?

Todo mundo já vivenciou essa experiência ao menos uma vez na vida. E só sabe o quando dói ser colocado “no banco de reserva” em dias de jogos decisivos quem passa pela decisão nada arbitrária.

O caminho que seguimos na direção contrária do nosso destino é muito arriscado. Torna-se cruciante persistir em estradas erradas quando é o coração que caminha descalço no asfalto árido.

O amor unilateral não é garantia de felicidade. Nunca foi. Nunca será.

Às vezes é necessário desistir, por mais estigma que esse termo carregue em sua significação. Às vezes é preciso recalcular o que ou quem não faz questão de entrar na nossa rota de sonhos e objetivos.

Não vale a pena romantizar a pequena probabilidade de transformar um assertivo "não" em algo grandioso aos nossos olhos.

Esse sentimento todo ao qual chamamos de amor não é algo para viver controlando a porta, o amor é a liberdade de ir e vir, é a tranquilidade de saber que o outro quer entrar e ficar, sem que precisemos insistir com sofreguidão.

O objetivo é amar alguém que não tenhamos que puxar pelos braços no meio de uma tempestade num copo d'água. A meta é amar alguém que esteja, que seja, que saiba se deixar ocupar, que não demande o esforço de matar um leão por dia para conquistar um afago doce e gratuito.

O adágio popular nos diz que "o que custa a paz é caro demais". É aqui que mora a liberdade de escolha e o respeito aos mais belos sentimentos que nutrimos no interior do coração.

Infelizmente, Dona Clotilde nunca namorou o Seu Madruga, tampouco casou-se com ele. Há um episódio, na verdade, que exibe as cenas do casamento entre a jovem senhora e o seu grande amor. Mas, tratava-se apenas de um sonho.

Um sonho, apenas.

Pessoas anseiam amores que correspondam, que construam, que desatem nós, que produzam laços.

Certa vez ouvi de uma andorinha libriana do meu vasto verão que o amor é uma massinha que se modela a quatro mãos... É isso.

Sonhar é bom, mas viver um amor acordado é sensacional!

Entre flores, xícaras de café, bolos e oferendas, o maior presente é ser presente, estar presente e se fazer presente, em todos os níveis que a beleza dessa polissemia assim contemplar.

Lívia Couto
Enviado por Lívia Couto em 05/01/2020
Reeditado em 05/01/2020
Código do texto: T6834557
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.