Terminou bem, mas se eu te contar você não vai acreditar ( Uma viagem inusitada rumo a Tauá)

Autoria: Anna Paula Ferreira (euzinha mesmo)

Hoje ao sentar-me à mesa para jantar com minha amiga Adrissa e meus dois filhotes, comecei a contar uma história que vivenciei em uma viagem que fiz sozinha, de carro, de Juazeiro do Norte para Tauá, na época em que as estradas para Tauá eram de “chão batido”.

Foi tão divertido relembrar, que, de repente, resolvi escrever esta crônica baseada nos fatos reais. Os nomes dos personagens foram alterados... Porque toda crônica baseada em fatos reais tem que ter esse – digamos – charme, que de certa forma favorece aos escritores que tem dificuldades em gravar nomes (o que não é meu caso).

Era um dia qualquer de 2002. Eu trabalhava no BB em Tauá-CE, mas sempre vinha a Juazeiro do Norte, de ônibus, para rever meu quase marido – Marcelo – que lá morava. Mas para contar a história deste dia é necessário dizer que uma semana antes dele, eu havia resolvido fazer todo trajeto de Tauá para Juazeiro do Norte e vice-versa, de carro, pela primeira vez.

No retorno, isto é, de Juazeiro do Norte para Tauá, foi que tudo aconteceu. Marcelo havia me pedido, cheio de recomendações, para deixar seu pequeno filho – meu enteado - Gustavo, de apenas 8 anos na cidade de Mombaça, onde o mesmo morava com sua família do lado materno. Até a chegada em Mombaça – ainda pela via asfaltada – tudo transcorreu dentro da mais perfeita normalidade. Pareceu-me até que os bons anjos da criança nos guardaram durante todo o percurso.

Foi aproximadamente às cinco e vinte da tarde que chegamos em Mombaça. Depois que o Gustavo desceu do carro, tranquilo, seguro e entregue aos braços sua adorável mãe, também minha amiga, foi que o destino me permitiu passar nesta viagem uma inusitada aventura.

Apesar do avançado da hora, eu tinha que encarar meus medos e seguir a viagem sozinha de carro para Tauá. O chegar da escuridão da noite coincidiu com a minha chegada no início da estreita rodovia que liga Mombaça a Tauá. Ao ligar os faróis percebi o quanto os mesmos eram fraquinhos – a luz alta não estava tão alta quanto eu necessitava, não sei se por defeito do veículo ou pelo meu astigmatismo.

Mas ainda assim segui. Depois de dirigir aproximadamente três quilômetros nesta rodovia, fui surpreendida, logo à minha frente, por uma vaca preta parada na estrada. Ela estava tão perto, mas tão perto, que tentei em vão evitar o choque. Ainda bati nela levemente, mas suficiente para amassar o capô e quebrar totalmente o farol do lado esquerdo do meu Fiat Uno, 1994.

Ainda pensei em parar para socorrer a bichinha, mas vi que mesma ainda estava de pé – e à sua volta tinham muitas outras vacas e bois – e um vaqueiro, a quem tive vontade de propalar os mais escalabrosos palavrões pela sua irresponsabilidade em tanger animais por uma estrada mal iluminada aquele horário. Pela raiva e pelo medo, e sem remorso, decidi que deixaria à ele a incumbência de tratar aquela vaca.

Segui na estrada, com apenas um e fraco farol, adentrando no trecho de “chão batido”.

Neste caminho, mais adiante, entrei erradamente numa via à direita. Percebi logo o engano, quando me vi dentro de um povoado. Parei o carro numa calçada, próximo de dois senhores e uma senhora idosos de aspectos bem humildes que conversavam.

- Por favor, os senhores podem me informar como faço para pegar a estrada de volta para Tauá. Acho que errei o caminho.

Ao ouvirem meu pedido, um dos senhores prontamente me respondeu:

- Está fácil. A senhora não errou muito não, basta pegar aquela pista ali “óh” e seguir in frente.

A senhora que estava do lado me perguntou:

- A senhora tá indo é pra Tauá é ?

- Sim, estou. Respondi.

- Ohhh Meu Deus ! Será que a senhora podia fazer uma caridade ?

Sem dar-me tempo de responder, foi dizendo:

- É que tem uma fia minha que tá buchuda, pra tê neném. Tá sentido dor. Será que a senhora podia levar ela pra maternidade de Tauá, já que a senhora vai pra lá ?

- Sim, claro que posso.

- Peraí por favor um pouquinho que vou lá buscar ela mulherzinha. O marido dela tava querendo levar ela de moto, mas tava muito bêbado. Peraí que vou lá chama ela.

Esse “peraí” durou uns quinze minutos, e quando a senhora voltou foi dizendo:

- Ouu minha filha, desculpa, ela já foi. O danado do marido dela se avexou colocou ela na moto, mais uma menina, e levou elas pro hospital. Mas ele tá bebim... oh Meu Deus! Em tempo de cai. Será que a senhora pode ajudar eles se vê eles no caminho ?

Um dos senhores ratificou:

- Vixi Maria, foi mesmo, ele tava bêbo demais, arriscado caí.

- Ajudo sim. Se eu alcançá-los pedirei a ele para leva-la à maternidade. Eu disse.

- Ouuu minha filha obrigada, faça isso por Deus, o homem tá bebo demais. Pode cair com elas na moto.

- Pode deixar. Vou lá, ver se os alcanço. Obrigada ! Fiquem com Deus!

- Vá com Deus mia fia ! Brigado !

Segui adiante, alguns quilômetros depois avistei as luzes traseiras da moto, que ziguezagueava pela estrada perigosamente. `

Pensei:

- Deus do Céu ! Como fazer uma aproximação segura ?!

Resolvi aproximar o carro por trás da moto em movimento e buzinar suavemente, sinalizando pedido de parada. Quando mais eu buzinava, mais o motoqueiro bêbado acelerava. Eu já estava ficando aflita, pois imaginava que ele imaginava que estava sendo abordado por algum assaltante, por isso acelerava mais, arriscando a vida dele, da “buchuda” que contorcia sua face de dor e da menina – esta estava na última posição na garupa, segurando-se como podia à imensa circunferência abdominal da sua sei lá o que.

A situação era crítica. Eu não podia causar um acidente. Mas não estava conseguindo estabelecer comunicação. Decidi abrir os vidros do carro. Imediatamente, grande quantidade de poeira entrou no veículo. Mas foi somente assim, engolindo algumas gramas desta poeira, que meu grito conseguiu chegar aos ouvidos da grávida:

- Paaraaaa, por favor ! Eu sou do beeeeeem! Quero levar vocêêêsssss para o hospitaaaaaallllll !!!!! Parrááaaa!!!!!

Percebi que eles dialogavam na moto. O motoqueiro bêbado estava hesitante em parar. A grávida o explicava e suplicava para que ele parasse. Já a menina não esboçava nenhuma reação.

O homem diminuiu a velocidade da moto, e nossos os veículos ficaram emparelhados. Assim, ele finalmente decidiu parar a motocicleta.

Eu parei o veículo ao lado da moto, e expliquei melhor a situação, o pedido da senhora do povoado, que eu era do bem, etecetera, etecetera e tal.

A menina desceu da moto, a gravida também. Quando esta desceu, a moto naturalmente deu um leve sopapo pra cima. O bêbado não conseguiu segurar a moto que virou tombando para o lado direito, sendo segurada pela portinha nunca ralada do meu carrinho já tão sofrido (snif).

Sem ânimo nenhum de brigar pelo pagamento do conserto da porta, relevei a situação, pois eu não tinha a menor intenção de discutir com um bêbado. Muito menos de fazer o parto daquela senhora contorcida de dor no meio do tempo e numa estrada escura.

O casal começou a discutir:

- Homi, volta pra casa, tu tá bebo demais, pode caí! Eu vou com ela e a menina pra Tauá. Amanhã tu vai lá vê nós.

- Nããããõoo. Eu vou é atrás de vocês.

- Mais homi! Apois deixa a moto aí num canto e vamo no carro. Eu tô me vendo de dor! Volta!

- Nããããooo. Eu vou é na moto.

Eu interferi:

- Senhora, pelo amor de Deus ! A senhora está em trabalho de parto. Não vamos perder tempo. O senhor, por favor, atenda sua esposa.

- Nããaaoo.. Eu tôoo beeeem. Eu vô!!!

- Mulher, pois vamos, entre no carro. Eu vou atrás dele, fazendo companhia. Eu disse.

A grávida sentou no banco da frente do carro e a menina foi chegando e já deitando no banco de trás. Dirigi no encalço daquela moto ziguezagueante por cinco quilômetros aproximadamente, enquanto ouvia os gemidos daquela mãezinha.

Para distraí-la, perguntei qual o nome dela:

- Maria.

- Dona Maria, e essa menina que a senhora leva? É filha da senhora? É para ajuda-la no hospital?

- É nada muié. Tô levando ela pro hospital é pro médico vê ela também.

- É? Que ela tem?

- É que esse meu marido é muito danado. Essa minina é minha irmã por parte de pai. No dia das mães, eu fui visitar minha mãe e deixei ela em casa. Ai ela viu meu marido se agarrando com outra lá dentro de minha casa, e me contou tudinho.

- Nossa !

- Quando eu soube, foi aquela confusão. Ele disse que era mentira. E ele me perguntou quem me contou. Eu não disse quem foi, aí ele disse que só pudia ser ela, que ia pegar ela depois pra dar uma pisa nela. A bichinha ficou tanto com medo que tomou uma caixa de remédio pra se matar.

- ÃÃÃÃhhhnnnnn???

- Aí ela vêi me dizer que tava se sentindo ruim, com dor de cabeça, e eu ainda dei um tilenó pra ela, sem saber o que ela tinha tomado.

Eu estava perplexa com a informação. Estiquei meu braço para o banco de trás, para pegar no pulso da garota. Ela estava gelada.

Meu pensamento rodopiava: onde eu tinha me metido meu santinho? Numa estrada de chão batido, toda empoeirada, num carro com capô amassado por uma vaca, somente com um farol fraquinho, com a porta furada, com uma gestante se contorcendo de dor em trabalho de parto, uma garota intoxicada por excesso de medicamentos tomados numa tentativa de suicídio e tangendo um bêbado irresponsável dirigindo uma moto. Pedi a Deus que saíssemos ilesos daquela situação – inclusive eu.

Como que ouvindo à minhas preces, de repente, o motoqueiro resolveu parar no acostamento.

- Oxi! Eu não acredito, lá vai Ciço bebê de novo! Ave Maria! A senhora por favor pode pará o carro preu falar com ele. Ali do outro lado da pista é um bar. Esse homi quer cair dessa moto.

- Paro sim senhora, mas não se demore. A senhora precisa chegar na maternidade o mais rápido possível.

Observei de dentro do carro os dois discutindo – ela o mandava voltar pra casa e ele dizendo que iria tomar “mais uma” para seguir para o hospital. Ela veio a mim, com um nítido conflito entre cuidar do marido bêbado ou do próprio parto e da menina.

- Ai Meu Deus esse homem não para de beber, não quer ir pra casa... que é que eu faço meu Deus ?!!?!? Tou me vendo de dor !?!?!?!

Sem saber o que responder, agi pelo instinto, e disse:

- A bolsa da senhora já estourou, a senhora precisa chegar ao Hospital, pois o bebe não pode sofrer. E essa menina, ela precisa de cuidados médicos também. Ela pode morrer aqui, ela tá gelada. O seu marido é adulto, deixa ele aí, pelo menos ele está parado, pede pra alguém distrair ele aí e vamos embora rápido.

E assim, convencida mais pela dor, do que pelos meus argumentos, seguimos a viagem livremente, com uma preocupação a menos.

Ao chegar em Tauá, as deixei no hospital público, que me impediu de lá entrar para finalizar o acompanhamento.

Resolvi voltar para casa (que era na pensão da Tia Licinha), tomar um banho restaurador, tirar os quilos de pó que repousavam sobre meus cabelos e pele, ter uma bela noite de descanso, e depois, no dia seguinte lá voltar em busca de informação sobre estado das pacientes e do bebê.

A chegar na calcada da minha casa, meu simpático vizinho me indaga:

- Tudo bom ! Fez boa viagem ?

Titubeei na resposta dizendo:

- É é é.... acho que sim, terminou bem... mas se eu contar ao senhor não vai acreditar. Depois te conto...

No dia seguinte, voltei ao hospital, não consegui obter nenhuma informação sobre Maria, nem sobre a menina, nem sobre o bebê. Ninguém, nenhum enfermeiro soube me passar qualquer informação sobre elas. E eu sequer sabia o nome correto e completo delas e não podia entrar fora do horário de visita.

Só me restou perguntar:

- Moço, desculpa a pergunta, mas é que preciso saber delas. Morreu alguém aqui ontem?

- Não senhora, ontem foi tranquilo.

Com a íntima convicção de que correu tudo bem, complementei:

- Graças a Deus!

Não pude ir durante o horário de visita procura-las, pois tinha uma jornada de trabalho a cumprir. Voltei lá no hospital o outro dia logo depois, mas a essa altura, elas já não estavam mais lá. Nunca mais as vi.