Distrações

Tínhamos acabado de transar quando o telefone dela tocou.

Anna estava de bruços na cama, balançando as pernas preguiçosamente e não parecia ansiosa para atendê-lo. Era sexta à noite, e estávamos só começando. Com a bebida e com todo o resto. O telefone parou e logo depois voltou a tocar.

- Você não vai atender? – perguntei.

- Não estou muito afim.

- Então por que você não o desliga logo de uma vez?

Anna se virou na cama, se esticou e pegou o celular nas mãos.

Por algum motivo ela resolveu atender a ligação e falou.

- “Alô”

Deu pra ouvir uma voz exaltada do outro lado, mas não consegui discernir o que tinha dito.

- “Estou em casa” – Anna continuou.

- “Estou com alguém aqui”.

- “Não estou preocupada com o que você pensa disso, boa noite.”

Anna desligou, e o telefone voltou a tocar.

Ela atendeu novamente e parecia estar ligeiramente fora do sério.

“O que você quer?” – Ela perguntou.

“Não. Aí é que você se engana. Não estou com uma mulher”

Anna desligou novamente e jogou o celular dentro de uma gaveta.

- Quem era? – perguntei.

- Minha ex-namorada.

- Ela parecia bem chateada.

- Sim. Ela disse que viria aqui matar nós dois.

- Isso é meio preocupante.

- Relaxa menino. Cão que ladra não morde.

- Tudo bem então. – Respondi.

Anna ligou o computador, botou música pra tocar e pegou a garrafa de uísque que eu havia trazido. Abriu a garrafa com o dente, amassou a tampa e a jogou no canto da sala.

- Não vamos mais precisar disso.

Botou uma dose pra nós dois e bebeu a dela de um gole só.

- Você costuma sair com homens? – Perguntei.

- Não. Não tenho paciência pra macho.

- E por que eu estou aqui?

- Sabe que nem eu sei? Acho que estou dada a tomar decisões ruins ultimamente... mas você não é de todo mal.

- E o que mais?

- Mais o que?

- O que mais você acha ruim nos homens...

- Ah. Menino... dá pra passar uma noite inteira falando sobre isso. Mas em resumo, acho que falta criatividade em vocês na cama. Falta empenho. E eu acho o pênis um órgão muito tedioso.

Beberiquei um pouco do meu uísque e me deixei cair deitado na cama.

- Dá pra concordar com isso tudo.

- Você já esteve com homens? – Ela perguntou.

- Nunca tive interesse.

- E o que te interessa nas mulheres?

- Eu poderia te dizer algum clichê sobre o corpo feminino, ou poderia te falar que cada mulher é um caso à parte. Mas o caso é que eu não saberia explicar realmente o que me atrai...

- Fico satisfeita com a sinceridade.

Anna finalizou outra dose e foi até a mesinha de cabeceira atrás de sua carteira de cigarros. Só havia um, que prontamente acendeu, e depois amassou o maço e jogou por cima da mesa.

- Puta merda. Esqueci de comprar cigarro.

- Posso ir comprar pra você. Tem algum lugar aqui perto que venda?

- Tem uma banca de revistas na esquina.

Anna tirou uma cédula de dez reais da gaveta onde tinha largado o celular e me entregou.

Vesti a bermuda sem me preocupar em colocar uma cueca por baixo e me enfiei dentro da minha camisa desajeitadamente. Saí do apartamento e fui até o elevador. Quando cheguei ao andar de baixo, dei de cara com uma mulher visivelmente alterada que correu para dentro, antes mesmo que eu tivesse saído.

- Boa noite. – Cumprimentei-a. Mas ela não respondeu.

Segui até o lugar que Anna havia indicado e comprei o seu cigarro. Voltei caminhando pela calçada, pensando em todos os problemas que eu havia deixado do lado de fora, antes de vir visitar Anna. De alguma forma, eles me perseguiam onde quer que eu estivesse. Minhas fugas eram apenas fugas, mas eu era escritor, e precisava fugir da realidade, de uma forma ou outra. Era parte do metiê.

Quando estava para atravessar a rua, um carro virou a esquina sem dar seta e quase me atropelou. O motorista ainda teve o desaforo de me xingar, como se eu estivesse errado. Ainda deu para ler o adesivo colado no vidro traseiro, antes que ele desaparecesse na noite. “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Enfim... não era de se espantar.

Entrei no prédio de Anna, cumprimentei o porteiro e tomei o elevador.

Quando cheguei ao andar dela, eu pude ouvir os gritos.

- Eu devo ser algum tipo de otária pra você, não é? – Gritou uma voz que eu não reconheci.

- Olha, Eloisa, eu só quero que você me deixe em paz.

- EU NÃO CONSIGO ACEITAR ISSO!

Entrei no apartamento e fechei a porta atrás de mim.

Pensei em deixar o cigarro e ir embora, mas tinha deixado meu celular no quarto de Anna. Fui andando até onde elas estavam e pude ouvir Anna falar com uma calma que contrastava com a exaltação da outra mulher.

- O que você não consegue aceitar, Eloisa?

- Que você esteja com outra pessoa em tão pouco tempo. E ainda mais que seja um homem.

- Pois você devia começar a se acostumar com isso. Eu saio com quem eu quiser.

- Quer dizer agora que você deixou de ser sapatão? Ou só está dando uma de bi-curiosa?

- O que eu faço da minha vida não é da sua conta. Se eu pego homem, se eu pego mulher, se eu não pego ninguém. A escolha é minha.

Eloisa percebeu minha aproximação e se virou em minha direção.

- É ESSE O ARROMBADO QUE VOCÊ TROUXE PRA TUA CAMA? – Gritou apontando para mim.

- Obrigado pela parte que me toca, moça – Eu disse com um certo cinismo que fez com que Anna desse uma gargalhada.

Eloisa pegou a garrafa de uísque e encheu um copo quase até a boca e bebeu o conteúdo de uma só vez.

- Puta merda... – Ela disse, depois de engolir a bebida.

- Anna... acho que é melhor que eu vá embora. – Falei interrompendo a discussão.

- Se quiser ir, vá. Mas deixe o cigarro, por favor.

Larguei o cigarro sobre a cama e recolhi meu celular.

Quando eu já estava saindo do quarto, Eloisa segurou no meu braço e sussurrou envergonhada.

- Me desculpe. Eu não devia ter te ofendido. Você não tem nada a ver com isso.

- Está tudo certo. Não me ofendi.

- Eu vou embora. – Ela disse, deixando o que parecia ser a cópia da chave do apartamento na minha mão.

Eloisa desapareceu no corredor e eu me sentei ao pé da cama de Anna.

- Como eu falei, cão que ladra não morde. – Anna murmurou.

- Mas ela parecia realmente magoada.

- Não tenho muito a ver com isso. Quem acabou o relacionamento foi ela. Só estou vivendo a minha vida.

Balancei a cabeça concordando e Anna acendeu mais um cigarro.

- Estou cansada, sabe? Cansada de gente que acha que pode me dizer o que fazer.

- Você não parece ser uma pessoa que costuma levar em consideração a opinião dos outros.

- Hoje não mais.

Anna pulou da cama e tirou a camisa que usava e que lhe cobria o corpo todo. Ficou completamente nua. Não consegui disfarçar o meu olhar, e ela sorriu provocantemente.

- Ultimamente, estou pouco me fodendo para o que os outros pensam.

- É justo.

- Eloisa uma boa pessoa. Mas acho que eu não era suficiente para fazê-la feliz do jeito que eu sou. E eu não gosto de ninguém querendo controlar cada passo que eu dou.

Anna esticou os braços e tocou a ponta dos pés com os dedos e depois pegou um livro que estava largado sobre a cama.

Um livro que eu havia escrito e que ela tinha comprado antes mesmo de me conhecer.

- Eu parei pra ler o seu livro essa semana. Engraçado que nele quase todas as mulheres que você descreve são fumantes. Inclusive me vi bastante em algumas personagens.

- É verdade. Só não sei dizer o porquê disso. Mas é algo presente em boa parte das mulheres com quem me envolvo.

- Deve ser algum tipo de atração do teu sub consciente.

Concordei com a cabeça e esvaziei o meu copo com um gole só.

- E por que você fuma? – Perguntei, com a boca ainda queimando do uísque.

- Fumar é morrer um pouco a cada tragada. Talvez eu tenha uma atração pela morte maior do que eu gostaria de assumir.

Anna tragou mais uma vez do cigarro e se levantou da cama. Sentou no meu colo e enlaçou os braços no meu pescoço.

- Dizem que os poetas precisam viver o que escrevem para não soarem cínicos. Não lembro quem me disse isso... É verdade?

- Precisamos comer de tudo pra saber o gosto das coisas. Eu devoro as pessoas pra vomitar minhas histórias. Senão elas terminam soando vazias e sem propósito.

- E o que você está esperando?

- Como assim?

- O que você está esperando pra começar a comer...

Anna me beijou, achei que o seu gosto caia bem, misturado com o cigarro e com o uísque. Enfim, talvez minha profissão, não fosse das piores, e acho que meus problemas poderiam esperar mais uma noite por minha atenção.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 16/01/2020
Reeditado em 16/01/2020
Código do texto: T6843116
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