O Escriba II.

Quando criança, com mais ou menos 11 ou 12 anos, numa época em que tudo que minha pequena Eldorado dispunha, para se comunicar com o mundo exterior, era uma micro-agência dos Correios, eu, Chico Rabelo, sabia dos segredos, da vida, da intimidade de muita gente.

Vou explicar...

Muitas pessoas que não sabiam ler, me pagavam para escrever cartas para seus parentes em seus estados de origem (maioria maranhenses).

Quase nunca me davam dinheiro; era um kg de arroz ou feijão, um pacote de biscoito recheado que eu adorava, muitas vezes açucar ou café...até carne de caça me davam. Paca, tatú (cutia, não)faziam sempre parte do cardápio.

Eu gostava disso... Me tirava a incumbência de tomar conta do chato do meu irmão mais novo, tendo em vista que eu passava tardes inteiras escrevendo ou lendo correspondências recém-chegadas.

Formava-se platéia na sala; os idosos em cadeiras, os mais jovens sentados no chão para ouvir a resposta da carta enviada há mais de um mês.

E as notícias eram variadas: ''morreu fulano...'', ''fulana pariu...'', ''sicrano foi preso por roubo...'', ''o furúnculo na bunda de mãezinha ainda não sarou...'', e daí por diante.

Lembro claramente do dia em que me chamaram pra ler uma carta na casa daquela senhora que sempre me pagava com biscoitos recheados. Saí de casa com água na boca...

Tudo ia bem durante a leitura da missiva até eu ler, em voz alta, o trecho que dizia: ''Marinete se perdeu e tá buchuda. O menino nasce daqui há 2 meses''...

O termo ''se perdeu'' queria dizer que Marinete havia dado pra alguém, que alguém ''achou'' Marinete e que a mesma estava grávida, prenhe.

A mãe, ao ouvir do jovem orador cabeçudo que ia ser avó, entrou em colapso nervoso. Desmaiou, deu chiliques, disse até que eu não sabia ler, que era analfabeto igual a ela, e tiveram que levá-la à farmácia pra tomar um ''sossega-leão''.

Resumindo: em meio a todo aquele furdunço, ninguém lembrou do meu pacote de biscoitos e voltei pra casa indignado, de mãos abanando.

Bons tempos uma ova...

Chico Rabelo.

Chico Rabelo
Enviado por Chico Rabelo em 18/01/2020
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