Sobre ser e estar

Ele gosta de bichos. Não tem apreço pelos da própria espécie. Ao longo dos anos foram eles, os bichos, que alimentaram os reclamos de sua alma. É biólogo, eu sei, mas isso apenas não justifica, caso alguém queira passar por entendido no assunto em seu julgamento. Seu afastamento dos humanos foi progressivo e lento, sempre a ele justificável, que é afinal o que importa. Chegou num ponto crítico dificilmente reversível, o da aversão. O mercado das relações sociais e afetivas, na maior parte das vezes, não cabem no seu bolso. Não aumenta o problema sendo agressivo com os seus, pelo contrário, é gentil, plasticamente gentil. Sente na pele a necessidade de total independência para com estes que, eventualmente, lhe cercam. Apenas em uma delas o desapego não vingou. Uma companheira lhe faz falta, muita, aliás. Procura não transparecer. Faz o que pode a respeito e vai sempre cultivando o equilíbrio que a situação exige. Sublima uma eventual falta de significado de vida com ela própria, a vida em si. Não a dele necessariamente, mas a dos outros, bichos e plantas. Carência afetiva, muitos diriam, mas é fato que o amor incondicional de seus bichos lhe fazem bem. Vez por outra, se relaciona com uma mulher, mas ainda não descobriu o ritmo de rega ou a ração adequada para motivar uma que valha a pena estar a seu lado de um modo contínuo. Algumas pensaram seriamente no assunto, mas impondo condições estranhas. Outras nem chegaram perto disso, menos mal. Talvez elas também sejam como ele, perderam o jeito para a coisa. De um modo ou de outro ele vai seguindo, lendo bastante sobre tudo e todos. Descobriu que ler sobre as pessoas vem sendo bem melhor, em certos casos, que viver com elas. Sobre Sílvia nunca lê, não é preciso. Ela o vem preenchendo ultimamente, sempre que pode. Passam alguns dias juntos em nome de alguma falta que a alma de um ou de outro reclame. Chegam a fazer alguns planos para o futuro próximo, mas não se empenham muito nisso, evitando frustrações. Tentam não se exceder nas expectativas, tal qual os bichos que criam e as plantas que cultivam. Vivem o aqui e agora todas as vezes que o aqui é possível agora. Muito parecidos os dois, quase iguais. Talvez um dia juntem seus bichos e plantas num mesmo lugar. Eu ia gostar de ver isso.

GripenNG
Enviado por GripenNG em 22/02/2020
Reeditado em 26/02/2021
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