No início também está a virtude

Anton Tchekhov, exímio contista e não menos brilhante dramaturgo, costumava dizer que se devia escrever de maneira a que o autor não precisasse de dar grandes explicações aos leitores. As atitudes, os diálogos e as reflexões dos personagens deveriam bastar.

Contudo, não raramente deparamo-nos com obras onde os autores parecem querer meter todo o romance na primeira página. Isto inevitavelmente cria ao leitor algumas dificuldades, é praticamente como se o autor erguesse uma floresta entre o leitor e o fluir da história. Cansado de tanta explicação, farto de emaranhar por tão difícil barreira, algumas vezes o leitor acaba por desistir logo na primeira página.

Outros, pelo contrário, conseguem uma primeira página límpida onde o leitor entra de imediato no romance, como se caminhasse por uma estrada bem agradável.

Existe ainda um terceiro grupo, o dos autores que na primeira frase conseguem agarrar o leitor. Não são muitos os que conseguem tal feito.

Abaixo, vamos analisar o início de dois romances onde basta ler a primeira frase para que entremos de imediato no mundo que o autor nos propõe.

‘‘Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.’’

Este é sem dúvida um dos inícios mais conhecidos e bem conseguidos da história da literatura. Trata-se evidentemente do início do romance Cem Anos de Solidão (1967), de Gabriel Garcia Márquez (1927 – 2014). Ao abrir a primeira página e ao ler a primeira frase, deparamo-nos de imediato com o personagem do romance (Aureliano Buendía) e ficamos a saber que será através das suas recordações que chegaremos ao porquê de o mesmo estar perante o pelotão de fuzilamento. Esta obra é hoje considerada um dos maiores clássicos da história da literatura, no entanto, em 1955 quando Garcia Márquez tentou publicar A Revoada, o mesmo foi recusado por várias vezes e o autor aconselhado a mudar de profissão. Gabriel Garcia Márquez viria a ganhar o Nobel da Literatura em 1982.

Vamos a outro exemplo.

‘‘ Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia não há muito, um fidalgo dos de lança em cabido, adarga antiga, rocim fraco e galgo corredor.’’

Não há muita gente que cultive o prazer da literatura que não conheça este início. Publicado em dois tomos (1605 e 1615) Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547 – 1616) é hoje justamente por muitos considerado como o primeiro romance moderno. No prólogo do primeiro volume, Cervantes diz que a ideia para o livro lhe ocorreu na prisão. Cervantes terá estado preso em Sevilha em 1547 por inércia na função de colector de impostos. Como autênticos ícones literários, o cavaleiro da triste figura e o seu fiel escudeiro Sancho Pança, têm conseguido através dos séculos conquistar sucessivas gerações de leitores em cuja imaginação D. Quixote continua ainda a deambular, na companhia do seu escudeiro, montando o seu cavalo Rocinante, socorrendo os injustiçados da sociedade e procurando o amor nos braços da sua Dulcineia.

E no que toca a primeiras frases, ficamos por aqui.