Mais uma manhã de domingo
Franca, vinte e dois de março de dois mil e vinte. Mais uma manhã chuvosa de domingo.
Em meio a pandemia que contamina o mundo e assola a economia do planeta; estou em casa, confinado, lendo o “Manifesto do Nada na Terra do Nunca¹”, escrito pelo Lobão. Sim, aquele mesmo! Figura ímpar, cantor, músico, escritor e crítico midiático.
Na vitrola, em meu quarto úmido, chia um LP do Eric Clapton: “The Cream of Eric Clapton²”.
Ouço grandes canções do Século XX e leio sobre a deterioração cultural do Século XXI, infelizmente concordando com todas as mazelas narradas com maestria experimental pelo, até então, multi-artista-cantor-escritor.
Pela TV, o noticiário é nada animador. Números estatísticos sobre a COVID 19³ é, de certa forma, algo impensável e inverossímil. De inimaginável cogitação há poucos meses atrás.
Então, estrategicamente, minha impávida esposa rompe a quarentena em busca de alimento, vinho tinto e remédios.
Não, não há doentes em casa; mas amanhã, farei um exame médico e preciso me preparar.
Enquanto isso, degusto a última taça de tinto seco ouvindo: “I Feel Free”, numa espécie de paradoxo momentâneo inescapável.
Um turbilhão de reminiscências povoa minha mente; lembro-me inevitavelmente da experiência EQM que tive meses atrás.
Nela, inexplicavelmente, eu aplicava vacinas num contingente de pessoas enfileiradas, como uma espécie de agente de saúde das regiões celestiais.
Eu iniciava o trabalho diário organizando filas e manipulando o material a ser utilizado, as vacinas. E eram muitas pessoas; entretanto havia muita vacina. Mas, não havia uma instrução sobre qual doença haveria de erradicar. E nem sabia o porquê da minha inédita e curiosa função.
Mas, com afinco e dedicação, labutava em favor da população ansiosa por uma incógnita imunidade.
Ainda não entendi essa experiência e, até a construção desse texto, não tive a oportunidade de desvenda-la ou compreende-la.
Há seis meses atrás, como um “agente de saúde” eu labutava diante de dezenas, centenas de pessoas numa espécie de jornada de imunização espiritual.
Foram, aparentemente, dias e noites nessa tarefa peculiar.
***
No momento a sociedade, tanto oriental (Irã e China), quanto a ocidental (EUA e Itália) se curva diante da ciência contemporânea e aguarda, numa espera impaciente, pela nova vacina que poderá imunizar e salvar a espécie humana, desse vírus letal que ostenta, diante de nossos microscópios, uma coroa em sua estrutura.
Contudo, a previsão de alguma vacina eficaz é de um ano para a produção e uso em escala mundial.
Todavia, paira no ar, uma expectativa de triunfo, redenção e glória para nossa frágil e delicada raça.
Enquanto isso, em meio a esse impasse imunológico, foleio um livro, ouço um LP, digito esse texto em meu teclado, brinco com minha filha, degusto a substância tinta da taça e enfim, abro outra garrafa recém chegada.
Notícias recentes dizem que as ruas estão assustadoramente vazias e a cidade parou.
Apenas uma chuva gentil chora sobre nós, agora.
Então, confabulo que as medidas e orientações governamentais estão sendo seguidas e acatadas pela população francana.
E, num devaneio de esperança penso que, em breve, tudo isso irá passar. Toda rotina voltará ao normal. O planeta Terra voltará a girar. É o que espero, é o que esperamos. É minha e é a nossa esperança.
¹LOBÃO “Manifesto do nada na terra do nunca” Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.
²ERIC CLAPTON “The Cream of Eric Clapton” Polydor, 1990.
³COVID 19: Nomenclatura dada ao vírus Corona. É uma doença respiratória causada pelo “coronavírus” que gera no indivíduo infectado uma síndrome respiratória aguda, podendo leva-lo a morte em poucos dias.