Reis,
 como aqueles de antigamente não existem mais. Mas sempre que vou a um museu ou viajo para países onde outrora eles existiram, não posso deixar de sentir uma estranha atração por essa antiga instituição da sociedade humana, que não consegue sobreviver sem esse arquétipo no topo da sua estrutura de poder. Fico imaginando: quem terá nascido primeiro? A idéia de um Deus ou a idéia de um rei, ou um líder tribal que exercesse poder sobre os outros? Alguns filósofos dizem que a idéia de Deus é inata. Quer dizer, as pessoas já nascem com essa noção, pois ela é uma estrutura que já vem com a nossa alma, que é algo imortal, pré-existente a nossa própria vida como organismo, um atributo cedido por empréstimo por Deus, e coisas assim. Outros filósofos, como o inglês John Locke, por exemplo, dizem que não é nada disso. Que a alma, como entidade pré-existente a nós, não existe. É uma superstição, tanto quanto o saci-pererê e a mula-sem-cabeça. Para estes pensadores, alma e espírito, são estágios de desenvolvimento da nossa mente, que tem essa capacidade de sublimar os instintos e as reações químicas chamadas pensamentos, transformando-os em algo mais sutil, que ás vezes nos leva a alucinações, e até a produção de verdadeiros fenômenos que transcendem a nossa própria condição de ser humano.
Por mais que pense nesse assunto, não sei o que concluir disso tudo. Talvez venha a sabê-lo quando morrer. Ou não. Mas se eu vier a saber, o que farei com essa sabedoria? Vai me servir para alguma coisa?
Uma coisa puxa outra. Se eu vivi outras vidas passadas, de que me vale tê-las vivido se eu não consigo me lembrar do que fiz de certo e errado nelas? De que me serve a sabedoria dessas experiências passadas se eu não posso me valer delas agora? Lembro-me de um trecho de um poema de Fernando Pessoa, em que ele dizia:
“(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê –
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.”  (...)

 
Meu coração não é um balde despejado como o do Fernando porque hoje não despejamos os nossos dejetos em um balde que será esvaziado pela manhã. Nossos dejetos são levados para um rio através de um cano de esgotos que, por sua vez, alcançará o mar. No meio do caminho os peixes e outras criaturas do rio e do mar se alimentarão deles, e depois nós deles nos alimentaremos. Olho para mim mesmo e me vejo como aquela serpente dos alquimistas, que se alimentava de si mesma.
 
Quero crer que o mundo, a humanidade e todas as coisas que nele existem não são meros acontecimentos fortuitos que se constroem, destroem e se reconstroem eternamente, sem ideais e sem esperanças, como o Fernando Pessoa acreditava e escreveu no seu poema “A Tabacaria.”


Quero crer que toda vida, e melhor ainda, todo gesto, toda ação que eu faço tem um propósito e é necessária para a conformação do universo, e que o universo seria melhor (ou pior) sem ele. Essa é a crença que alimenta minha sensação de importância e não me conformo que indivíduos como Nietszche, Sartre ou mesmo Fernando Pessoa, com sua metafísica de solteirão infeliz, tentem me tirar isso
 
“Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,”
 
Se tudo for mesmo assim, porque nos esforçamos tanto, porque brigamos tanto, porque sofremos tanto por algo que se repete na infinitude da duração e na imensidade de um universo sem alma e sem qualquer propósito? Não há reencarnação, não há outra vida me esperando, nem céu como recompensa, nem inferno como castigo? Nem idéias inatas, nem alma nem espírito? Se isso for verdade, a pergunta inicial também fica sem propósito. Que importa se os homens pensaram Deus primeiro ou um rei? Deuses e reis se tornam apenas necessidades da nossa mente, que não podem conceber a vida sem a idéia de que existe alguma coisa superior a nós.
 
“(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!,e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.”

 
Voltando aos reis (já não me lembro por que comecei a escrever isso).... Ah! Lembrei-me agora. Foi porque, rebuscando velhos papéis numa caixa encontrei uma antiga redação que fiz quando estava no ginásio. O tema era: “Se eu fosse rei”. Quanta bobagem escrevi. Mas tenho certeza que eu fosse mesmo rei, naquele tempo, eu faria tudo aquilo que escrevi. Ou pelo menos tentaria. Lembro-me também que tudo o que escrevi naquela redação foi inspirado num filme que tinha visto na época. O filme era o Califa de Bagdá e contava algumas das estórias das Mil e Uma Noites. Em criança eu acreditava que tudo aquilo era verdade. Hoje penso que a Bíblia, o Alcorão, e todos os livros sagrados do mundo foram inspirados na mesma fonte de as histórias das Mil e Uma Noites.

Quero crer que o Fernando, quando escreveu esse poema, estava num dos seus muitos instantes de depressão. Ele, Nietszche, Sartre, Kafka e todos os existencialistas eram sujeitos depressivos. Fernando não tinha, como eu, uma mulher cheirosinha me esperando na cama. Ela me sorri. Não como o dono da tabacaria, que sorri para ele um sorriso pontual, do dia a dia. O sorriso da minha mulher é carregado de significados e promessas. Eu olho para ela e o meu universo se reconstrói, cheio de ideais e esperanças. Viva Vinicius. A vida quer ser vivida. Não importa quanto dure. Cada momento é eterno. A loucura é querer que ele seja um processo com início, meio e fim. Agradeço ao micróbio chinês, que me fez prisioneiro em casa e me proporcionou a oportunidade de ficar elocrubando essas coisas. Essa é a parte boa da notícia ruim.

 

João Anatalino