O ANJO DA SALA 21

CAPÍTULO 21

Simplesmente Iraci Briannese

Um dia, no decurso da minha infância, mudei de escola. Crianças mudam de escolas. Ou não. Minhas raízes ainda não se faziam fixas. Faltava algo. Por muito tempo, faltou algo. Vejo e conheço pessoas que nunca mudaram de escola, de bairro, de cidade. Sendo sincero, desde muito cedo, não foi este o caminho que percorri. Tchau, colégio das irmãs. Olá, Colégio Luterano. Que mudança! Hoje, reconheço, que mudança!

Mudei até de vida. Quer dizer, nem tanto assim. Como sempre ainda me apavorava a possibilidade de passar uma tarde inteira dentro de uma sala, fechado. Mas, agora, o colégio ficava na esquina da minha casa, o Luterano. Eu precisava atravessar só uma rua, a da frente da minha casa e já estava na calçada que me conduziria ao lugar do meu estudo. Prédio marrom. Paredes marrons, com uma pequena faixa amarela ao nível do chão. Um pátio gramado, cuidadosamente conservado, não grande. Uma tela, perfazendo um alambrado. O portão. Minha sala agora seria a 21.

Algo eu trouxe comigo da outra escola: seria tempo demais sem fazer nada, só estudando, só escrevendo, só fazendo contas. Assustava-me o mar (eu era um petiz) de rostos desconhecidos. Conheci a professora Iraci. Ar maternal, bonachão, parecia alguma das minhas tias, com toda aquela doçura, certeza. Que enorme diferença ela faria em minha vida. Começava do olhar: muito bondoso e compreensivo, mas muito bondoso, mas muito compreensivo mesmo. Sou sincero. Em sua voz, um mundo de mansidão e calma, acolhimento e calor humano. Apesar disso, entrei na sala e... comecei a chorar. E não parei mais. Fui mandado pela professora Iraci para o gabinete da Dona Eunice. Impossível ficar com um aluno que chorava tão destrambelhadamente: Uááá, uááá, uáááá!!!!

Foi assim que conheci o lado humano da maior professora que tive. Mais meiga, mais solícita, mais branda, acolhedora e inteligente. O anjo do ensino. Nunca perdi esta convicção: um anjo. Quando eu entrei na sala de aula naquela tarde, assustei-me. Estava desesperado. Era tempo demais. Ela, a mestra, não ralhou, não gritou, não me ridicularizou, não me olhou feio. Pegou minha mão, este foi um gesto tão simples, mas enormemente profundo. Levou-me calmamente ao gabinete da dona Eunice. “Não precisa assistir à aula, fique aqui a tarde inteira, se quiser”. Que ato de misericórdia!!! Um peso de toneladas foi tirado dos meus ombros infantis. Não precisa, não é obrigatório – assistir à aula. Era, lógico, mas ela não me impôs, não me obrigou. Foi como soltar um passarinho de uma gaiola e dizer-lhe: “Voa”. Sobre as campinas verdes, os riachos murmurantes, as cachoeiras caudalosas.

Dona Eunice também era especial, compreensiva. Disse-me: “Você não precisa ir para a aula, fica aqui comigo”. Acalmei na hora. Parei com o choro. Dona Eunice. Diferentemente de qualquer diretora rabugenta, feia, com uma verruga no nariz e olhar malicioso, ela era doce e melíflua. Este foi o primeiro fato que me impactou. Ah, o acolhimento que ela me deu. Senhoras e senhores, encontrem alguém que lhes acolha com a mesma meiguice, com a mesma compaixão. Terão um oásis iluminado de água pura da vida. Terão frutos sumarentos e apetitosos na bandeja da bondade humana. Apesar disso, eu estava chorando, não queria entrar na sala de aula, fato já sabido. Não espinafrou, querelou, zangou ou censurou. Simplesmente me levantou, segurando-me pelos braços, até um espelho. Alçava-me com candura, com dulçor. Disse-me, docemente: “Vê, Jeferson? Seus olhos cheios de lágrimas não te deixam bonito. Você é tão lindo quando não chora. Pare de chorar”. Parei. Com voz mais doce ainda: “Viu como você é bonito quando não chora?” Nunca mais. Nunca mais eu chorei para não adentrar o lugar de estudos.

Voltei para a sala de aula. Como um recluso deixa a prisão, após cumprir sentença pesada, voltei. Alma leve, coração em paz, sem susto. A professora, como, se não me engano, já disse, era a senhora Iraci Brianese, esposa do professor Alceu. Sonhei que ela era um anjo, acordei e não vi diferença alguma. Iraci Briannese. Uma simples professora primária? Talvez sim. Mas ela carregava, em seu olhar bondoso, o brilho de um sol, e na voz professoral um mundo de: aconchego, de aceitação, vá lá, de amor. Entrei na sala novamente: amuado, jururu, não quero faltar com a verdade. Ressabiado, desconfiado, suspeitoso, sorumbático, cismado, desconfioso, melancólico, macambúzio mesmo. Não tinha como ser diferente. A sala ainda me impunha terror. Livre do peso da obrigatoriedade. Fora indultado pelas duas mestras. Preso, porém, aos meus maneirismos infantis (“não gosto de escola”). Mas deliberara não chorar (para não ficar feio). A professora me chamou à frente. Por ser a professora Iraci, fui. Ela disse a todos: “Sabiam que o Jeferson lê muito bem? (Eu mesmo não sabia, kkkkk). Pediu-me a leitura de um pequeno texto. Li. Ao final ela bateu discretas palmas, as crianças ficaram só observando. “Como lê bem! Parabéns”. Pronto. Eu lia bem. Entenderam? Eu não era mais um simples aluno, chorão, fujão, com os olhos vermelhos e vontade de sair correndo. Eu lia bem. Este, para alguns pequeno, impulso para a frente, para o alto, seria meu divisor de águas. Tornar-me-ia professor (eu, que tanto detestava escola). (Eu lia bem, entenderam?) No futuro, tornar-me-ia um apaixonado pelo estudo da Língua Portuguesa, passearia intrigado, curioso, dedicado, pelo augusto mundo da transitividade verbal, das orações coordenadas e orações subordinadas. Descobriria os segredos invioláveis da crase. Curvar-me-ia perante a atratividade pronominal, para jamais desrespeitar a natural próclise, a extraordinária mesóclise e a volúvel ênclise. Aprovaria, sem reservas, o poeta Olavo Bilac, parnasiano que cantou nosso idioma, com tanto lirismo e afeição. Seus versos tornar-se-iam os meus versos. Junto com ele eu descreveria assim nosso brilhante idioma:

Língua Portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,

És, a um tempo, esplendor e sepultura:

Ouro nativo, que na ganga impura,

A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura:

Tuba de alto clangor, lira singela,

Que tens o trom e o silvo da procela,

E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma

De virgens selvas e de oceano largo!

Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

em que da voz materna ouvi: "meu filho!",

E em que Camões chorou, no exílio amargo,

O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Passaria anos de giz e apagador na mão exercendo o sacrossanto ofício de ensinar. Apegar-me-ia aos meus alunos, aos meus colegas, às semanas pedagógicas (brincadeira, hahaha. Ninguém se apega às semanas pedagógicas). Passaria dias, meses, anos, debruçado em torno de livros de chamada, canhotos de nota. Que vida maravilhosa. Que luz intrínseca e extrínseca. Tudo porque aquele anjo humano, professora Iraci Briannese (Deus a tenha em excelente lugar), em vez de reparar no meu jeito destrambelhado, errático, proclamou perante um seleto auditório de 22 aluninhos de primário: “Viram como ele lê bem?” Foi meu grito de independência escolar. Eu lia bem. Minha inconfidência mineira das letras e do alfabeto, eu não era apenas um aluninho birrento e mimado mais. A lei áurea, que me alforriou da birra e da matunguice, assinada pela Princesa Isabel Briannese.

Deus abençoe sua querida memória. Felizes os misericordiosos. Creio que eles alcançarão misericórdia também. Deus abençoe os professores. As professoras. Os sensíveis, bondosos, mais ainda.