Ampulheta

“...se em um instante se nasce, e se morre em um instante, um instante é bastante para a vida inteira.”

Clarice dizia que a vida era efêmera e dela não discordo.

A verdade é que nascemos de um despertar uterino. Tomamos o primeiro fôlego de vida acompanhado de um choro espontâneo e a vida começa. É aqui que o destino vira a grande ampulheta, onde o esvaziamento total da parte superior equivale a um período de tempo predeterminado, indicando até onde podemos e devemos ir.

Piscamos os olhos, festinha de 5 anos. A mãe, no ápice da saúde, organiza os preparativos com todo amor e carinho. Balões, docinhos, bolo temático! Ah, que delícia! Máquina fotográfica analógica com 24 poses para registrar o momento.

Então dormimos, e no acordar, já vive-se a doçura do primeiro amor. As músicas são singulares, poéticas, libertadoras. Começamos enfim a caminhar em passos lentos na corda bamba das satisfações e decepções da vida.

Mas vem o primeiro baque... e ao levantarmos do chão, BUM! 18 anos.

Ensino médio concluído, alistamento militar obrigatório para os rapazes e agora, segundo o IBGE, rapidamente transferidos para o gráfico dos desempregados do país.

Pressão familiar. Corre! A faculdade vem aí!

Uma trabalhosa missão de decidir o rumo da vida quando ainda nem se tem noção do que de fato é a vida.

Contratos, CLT, congressos, artigos, textos, proatividade. Barzinho com os amigos.

“Ei, cerveja gelada nem é tão ruim assim...”

Almoço de natal com a tia inconveniente: “Já tá namorando, minha filha?” Bota uva passa, tira uva passa. Roberto Carlos na telinha da Globo, minha mãe (que já não anda tão disposta como outrora) reclama da bagunça na cozinha. E já são 25 anos.

Mais um nível alcançado no joguinho do Nintendo: casamento, filhos, jornadas duplas.

A balada já não é tão atrativa.

Enquanto isso os anos correm brincando de futebol no campinho da quintal.

Feriadão de Carnaval com dois dias reservados ao bloquinho da Netflix. Pipocas são confetes, o “refri” é a serpentina.

Acabou a mordomia. Trabalha. Estuda. Isso! Agora só mais uma hora e extra e...

“Ai... Ui...” Dor de cabeça forte.

Emergência do melhor hospital que o convênio da empresa oferece:

Afere a pressão, saturação, arregala os olhos, põe a língua para fora e diz: “aaaaaaaaaa”.

“É uma estafa, senhora.” – “Estafa aos 33 anos?” (Cristo morreu aos 33. Meu Deus!)

"Como é possível tirar o pé do freio quando as placas só me direcionam a acelerar?"

Toma aqui um soro e cala a boca, minha filha. Amanhá "tá" nova!

(...)

Um bom filho a rotina torna. Amigos que vêm, amigos que vão.

- Já financiou o apartamento próprio em 360 meses sem entrada e sem juros?

- Ah, não! Ainda é aquele carro ano 2014?

Putz...

Vacinação das crianças, do gato, do cachorro, férias escolares, viagens, boletos, hospital, supermercado e mais trabalho.

"Como assim você ainda não fez uma pós-graduação? Na sua idade eu já tinha, eu já fazia, eu já, eu, eu..."

Brigas.

“Não tá dando certo.”

Divórcio.

-Calma, eu só preciso de uma dose de Vodka.

E mais uma, e mais outra.

(...)

“Parabéns pra vocêêê, nesta data queriiidaaaa...” Vai, assopra a vela e faz um pedido:

“Como assim 40 anos se passaram tão rápidos?”

Ao redor da mesa, os filhos e os cônjuges dos filhos. A nora número um está grávida. O pai das crianças (que já nem são tão crianças assim) fora convidado pelo caçula. Fotos para registrar o momento (dessa vez num iPhone, nada de câmeras analógicas).

Organiza a leve bagunça da festinha, agradece aos poucos convidados que já se vão. É hora de dormir outra vez.

(...)

E depois das bodas de ouro a Artrite dá as caras. Caixinha lotada de remédios na cozinha. Hipertensão, Diabetes, Complexo vitamínico, Gastrite, Menopausa.

“Mamãe, já tomou a vacina da gripe? Todos os idosos precisam tomar, vou passar aí para levar a senhora ao postinho.”

À espera da filha, caminha até a estante da sala, com alguns álbuns empoeirados. A foto do primeiro aniversário aos 5 anos permanecia como se fosse recém tirada. A aparência do retrato já não era a mesma.

Por fim, a aposentadoria, os netos, sessões de hidroginástica, recordações...

A linha tênue entre o choro da chegada e sorriso da partida.

(...)

Não sejamos tolos em acreditar que todos viverão a mesma ordem de acontecimentos, mas sejamos coerentes em aceitar que a vida passa para todos como uma locomotiva prestes a descarrilhar.

E aquele abraço que você não deu?

E aquele encontro com os amigos da escola que sempre foi adiado?

E a tragédia que vitimou o parente próximo e amado impossibilitando um último adeus?

O livro que esperou para ser lido, o carinho postergado, a viagem que nunca aconteceu...

Em que momento da vida percebemos que as desculpas são somente desculpas para abdicar de coisas que fariam total diferença no contexto da vida, caso tivessem acontecido?

Hoje é domingo, amanhã pode ser luto.

Cá com os meus botões, penso que viver é transpassar as barreiras de um ciclo biológico e social não arbitrário. Viver é verbo intransitivo. É verbo significativo. O complemento está saber conjugá-lo corretamente em todos os pronomes pessoais de um Tempo Presente, desse Modo que ora é Indicativo, ora é Imperativo.

A vida não é e nem deve ser exclusivamente orgânica. Viver é um ato político.

Somos feitos de instantes, e é na soma desses instantes que a vida se vai. Não há motivos para tentar compreender, viver ultrapassa qualquer entendimento lógico e racional.

Clarice tinha razão em suas palavras cirúrgicas. A morte é certa, a vida não...

Quanto tempo o tempo a sua ampulheta ainda tem?

Lívia Couto
Enviado por Lívia Couto em 29/03/2020
Reeditado em 29/03/2020
Código do texto: T6900229
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