De um para outro e o óbvio

De um para outro e o óbvio






Na virada de 1980 ganhei dois livros de presente que foram determinantes naquele período e quem sabe, por toda a vida. “Contraponto”, do Huxley, e “A queda", do Camus. Uma cortina foi aberta ali. Veio de outra pessoa. Curioso como essas coisas marcam.

Me atreveria a extrapolar, discorrendo que nesses eventos acontece uma energia luminosa de alegria, diversão e vivacidade.

No final do ano passado, conversando com um amigo de geração posterior, surgiu como que por encanto a idéia de fazer uma lista de filmes inteligentes que resistem ao tempo. Pelo menos até agora. Ele fora três vezes seguidas assistir "O Irlandês”, do Scorcese. Teceu loas e loas. Calhou que no nosso próximo encontro falei do meu desagrado com relação a esse trabalho. Sem contenda, gosto é gosto. Esse amigo formou-se em cinema dois anos antes e detém extensa cultura no assunto. Falando para o ar, comentei sobre “Heat”, do Michael Mann, (1995), onde, assim como em “O Irlandês”, Robert De Niro e Al Pacino contracenam. Ele não conhecia o filme. A idéia da lista surge em seguida.

Quinze dias depois, mais ou menos, ele me agradece quase com uma reverência. Nunca tinha visto nada desse naipe. Dissecou uma tese instantânea cujo resumo equivale a não se faz mais cinema assim.

Para a lista funcionar urge agremiar cobaias. A turminha da geração Netflix vê coisas bem acabadas mas com a consistência de um figo apodrecido. E nem se poderia dizer "pelo menos por comparação”. Outro voluntário surgiu e, além de “Heat”, levou de brinde "A Cor do Dinheiro”, do Martin Scorsese, (1986). Fala sério, Paul Newman e Tom Cruise, o primeiro quebraram a forma, o segundo, nesse papel, ninguém no mundo faria igual.

Sobre ambas as películas rasgou o verbo em considerações notáveis. Descobriu-se através de um entusiasmo vibrante como há muito não se via.

Inteligentes e modernos, modernos, saliento, apesar da ausência dos componentes dominantes da atualidade, parece que grosso modo foram rodados ano passado, essa tem sido uma percepção geral, inteligentes pois o mecanismo de enredo, atuação e imagético não deixa espaço para outro parecer. Adjetivos sérios num planeta em polvorosa, hipnotizado, quiçá, dentre tantos aspectos. No presente momento a relação conta com 9 títulos, sendo o último, com o atestado do brother cineasta "não se faz mais cinema assim” - "Out of Africa”, dirigido pelo Sydney Pollack, 1985, com Meryl Streep e Robert Redford.

As conversas que brotam desse intercâmbio passam rentes ao que se chama de água viva que move, anima e regenera a alma. Sem mencionar que a galerinha sai da pilha de "Parasita" e congêneres. O leque começa a se abrir.

Nenhum interlocutor traz no colete a fórmula para salvar a humanidade, porque, convenhamos, tal pretensão embute uma chatice medonha e a própria lista, mero exercício para passar o tempo, e que tempos, hein, não estamos vivenciando medidas sanitárias e científicas, mas uma progressão da burrice em direção à tirania.

Daí temos mais um amigo na casa dos 30, mas a praia dele é música. Toca muito. Vive imerso em estudos, ruma para o virtuosismo, ouve de tudo, eclético, calhou que no Domingo de Ramos tive uma revelação, um anjo soprou no meu ouvido "Stella By Starlight”, (Live), com o Oscar Peterson e Joe Pass.  Evento gravado na Cidade Luz, na La Salle Pleyel, em 1975. Mandei o link pro tal amigo, nos encontramos na quinta santa e sem qualquer discussão prévia chegamos na mesma conclusão: raríssimos tocaram com tal destreza e vigor. Veja, meio século diluiu-se por baixo da ponte, Pass e Peterson estavam rodeando a casa dos 50, sujeitos maduros, artistas, e com aquela infalibilidade que parece, no cenário atual, infantilizado, prostrado, parece lendário. Que estranha transformação. Ouvindo hoje, a pegada deles, (grip) permanece não apenas inconfundível como singular.

No filme "A Cor do Dinheiro” Paul Newman está de costas para a mesa de sinuca quando ouve o arremesso uma, duas, na terceira vez ele vira para o então desconhecido Cruise. Foi fisgado pelo som da tacada.

Cinema e música, duas artes com muita plasticidade, acho que pode-se dizer assim, e como tudo, tem de ter uma alma de aço embutida, o tempo passa e essa qualidade só melhora.

Heraldo do Monte, coisa de um ano atrás, manifestou um pensamento que serve como uma luva para essa conversa: Os músicos com quem trabalhei, Hermeto, Paulo Moura, Elomar, Arthur Moreira Lima e tantos outros, são tão preparados que, concerto após concerto, termina ficando óbvio que vão arrasar, tocar muito bem. Tão óbvio, que quando você diz "bom concerto" ou "boa sorte", está apenas desejando que o teto do teatro não caia. Também por essa consistência é que a gente lembra mais das boas gargalhadas, das coisas que acontecem fora do palco.
Porque no palco, acontece o corriqueiro.

Toda essa história (Covid…) me lembra uma antiga lição originária do oriente entre mestre e discípulo. O mestre exibe um bastão e diz: eu vou te bater com esse bastão se você se mexer e vou te bater se você não se mexer. O discípulo pensa um minuto e arranca o bastão do mestre.

Óbvio.

(Imagem: "Pirilampos" por Tsuneaki Hiramatsu)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 13/04/2020
Reeditado em 29/07/2020
Código do texto: T6916107
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