Deus, o diabo e o coronavírus

Estava Deus em seu pórtico, semblante reflexivo, num tempo demasiadamente longo, buscando uma fórmula que pudesse introjetar nalguma comunidade e que, a partir de um discurso persuasivo, tocasse o coração da humanidade e a fizesse entender que, a continuar tudo como está, a interminável experiência humana talvez conhecesse um fim melancólico. O desânimo com os caminhos que a maioria das pessoas tem escolhido na breve história do ser humano, por vezes o deixava dias seguidos taciturno, em aparente desalento.

O diabo, há séculos espreitando o melhor momento de se aproximar e lançar um xeque-mate naquele jogo atemporal do bem x mal, viu chegado seu momento de brilho. Num descuido de Deus, venceu a barreira de luz que o mantinha afastado e se aproximou mais que poderia, a fim de perscrutar o sentimento de Deus e o colocar à prova final. Quando o Criador o avistou, já estava a passos do Éden, zombeteiro como era de seu feitio. Atrevido, solicitou uma entrevista e já se foi aconchegando nas dobras dos calcanhares. Deus o mirou com piedade, concedeu-lhe a palavra e decidiu conduzir o diálogo com o propósito de identificar falha insuperável no plano diabólico, para a partir dela reconstruir o projeto da vida humana.

_ O que foi desta vez?

_ Senhor, vejo-o aí, há dias, sem encontrar uma resposta adequada para os erros em seu protótipo de ser humano. Proponho-lhe, uma vez mais, darmos um fim a isso tudo. Não percebes que a humanidade fracassou, definitivamente? O que mais fará para tentar salvar esse maldito projeto? De geração em geração as pessoas foram se multiplicando, já atingiram os confins da Terra e não se deram conta de que o espaço e o tempo estão se acabando. Você não tem outro Filho a enviar, o que fará, irá você mesmo? Lembre-se, aí seria o fim dos tempos...

_ Pobre diabo! Sempre a testar meu plano de amor. Não vês que o protótipo está melhorando a cada século? Ainda não percebestes que jamais desistirei da criação? De tempos em tempos parece que tudo vai ruir, há uma sobrecarga de aflições – fome, doenças, mortes prematuras –, mas, no limite, sempre alguns seres iluminados reconduzem o projeto aos trilhos. O mal que lanças cotidianamente aos corações de pessoas mais fracas sempre faz muitos sofrerem, mas há tantos bons que você jamais ganhará essa luta.

_ Misericórdia, Senhor! Deslumbrado com sua criação, tu é que não percebes que cada vez mais os maus estão vencendo essa batalha. Acorde, por Deus! Quantas guerras ainda consigo forjar? Quantos milhares de dólares faço os poderosos despejar em sua maquinaria de guerra, atingindo dois flancos ao mesmo tempo? Muitos morrem por efeitos colaterais da falta de mira, e outros milhares de fome, desnutrição e todo tipo de doença por falta de numerário suficiente a adequadas condições de vida. Ainda tendes esperanças?

_ Para cada doença haverá uma cura. Meus cientistas, ainda que desacreditem de mim, inspirados pelo dom da preservação da saúde e da vida – talvez o mais nobre dos propósitos –, trabalharão incansavelmente na busca de tratamentos, vacinas, medicamentos...

_ Por favor, sem pieguice. O câncer tem dizimado milhares há anos. Que cura, meu Deus? Tenho estimulado o surgimento de tantos vírus que os médicos nem mais conseguem identificar qual deles e qual o melhor remédio. Tenho insuflado governantes populistas a cooptarem adeptos ferrenhos a seus ideários homicidas, e o resultado tem sido extraordinário. Não vês os cortes de verbas para pesquisas? Não vês a campanha contra as vacinas? Não percebes quantos vírus sem mapeamento genético e sem vacina? Não há mais salvação, por Jesus!

_ Maldito Satanás! Só falta achar que podes criar um vírus mortal e dividir as nações, dividir as pessoas por gerações, acirrar a luta entre o bem e o mal a ponto de colocar tudo a perder...

_ O projeto já está pronto. Oh, Deus! Descobri um vírus perdido há anos, abandonado, o recriei e o lançarei num país bem populoso, para a partir dele se disseminar por toda a Terra. Será o fim...

_ Por que sempre se aproveita de meus momentos em estado de fluxo, nos quais sangra meu amor pela humanidade, permito-me contemplar a criação e me ponho a buscar nas pessoas a chave da compaixão? Em minha concentração absoluta, aproveita-se para instilar um novo mal, obrigando-me a resolver mais um problema da criação?

_ Não precisa ser eternamente assim, meu Deus. Permita-me fazer esse teste final.

_ Qual é?

_ Lançarei um vírus mortal, coronavírus, renovado, e as pessoas pensarão ser apenas mais uma espécie de gripe. Quando se derem conta, tudo estará contaminado.

_ Isso não foi conseguido nem com o H1N1, a tal gripe suína, e outros do gênero...

_ Nunca duvides de minha capacidade, Senhor. Verás que farei algo de novo dessa vez.

_ O que pensas ter aprontado agora?

_ Com esse vírus, que mais parecerá uma gripezinha, as pessoas terão tanta dificuldade de respirar que não conseguirão fazê-lo sem a ajuda de aparelhos respiradores, terão que ser internadas em UTIs e lá permanecerão por duas semanas ou mais.

_ Misericórdia! Não haverá leitos de UTI para todos!

_ Eu sei... Os idosos serão os mais afetados e não haverá espaço para todos nos hospitais.

_ Pare! Nem o céu está preparado para receber tantas pessoas há um só tempo.

_ Já comecei... Aproveitei-me de seu estado de fluxo e já dei início ao projeto final. O apocalipse não tardará, meu Senhor. Não o prometestes a João? Sou agora seu melhor apóstolo.

_ A humanidade se unirá contra esse mal e encontrará logo uma saída. Eu os iluminarei nessa nova passagem do deserto.

_ Faça-me rir! Não haverá tempo. Você projetou essa gente com um delay de percepção e reação incompatível com grandes catástrofes. Sempre foi assim. A cada século dissemino uma grande peste e milhares dos seus queridinhos morrem sem que algum cérebro encantado tenha descoberto a cura. Os governos, formados para proteger a economia, preocupam-se com esta antes do que com os povos, e quando resolvem aportar dinheiro suficiente às pesquisas, milhares já se foram às covas.

_ A inventividade que animei nalguns geniais fez descobrirem tantas tecnologias que em minutos todos já saberão e irão se prevenir.

_ Ledo engano, caro Senhor. Escolhi a dedo. A peste vai começar no país mais populoso da Terra e quando alguém descobrir tratar-se de uma nova espécie de vírus e tentar criar mensagens de alerta, será duramente reprimido, e poucos vão acreditar nesse profeta do caos. Quando a coisa sair de controle, muitos empresários e turistas já terão transportado esse vírus insidioso em suas malas e o terão disseminado pela velha Europa, de lá para o país mais poderoso do globo e de lá para o resto do mundo. Muitos governos se preocuparão primeiro em salvar suas economias, não farão campanhas sérias de isolamento social, e quando acordarem, contarão os mortos, não haverá mais espaço para os sepultarem, e a pandemia econômica se encarregará de terminar o serviço da pandemia sanitária.

Deus lançou os joelhos ao chão, levou as mãos de luz ao rosto e chorou copiosamente. Anteviu toda a desgraça espalhada por todos os continentes. Viu as mortes agonizantes nos leitos de hospitais, e depois nas próprias casas por falta de lugar adequado ao atendimento. Sofreu com o desespero de tantos médicos e enfermeiros fazendo a terrível escolha de Sofia, percebeu o despreparo dos governantes, o descontrole geral, a fome, a miséria.

Até o diabo teve ligeira compaixão. Horas depois se recompôs e lançou-se ao duelo mortal.

_ Querido Deus, os governos não conseguirão evitar a fome generalizada. Alguns agirão logo, usarão todas as suas reservas para distribuir renda a tantas pessoas que ficarão sem trabalho, mas outros irão preferir proteger as empresas, permitindo que elas deixem de pagar salário, e a fome irá aprofundar o caos. Quando a fome flagelar os corpos desnutridos, os pobres sairão de seus casebres e irão à procura de comida, ampliando o contágio. Algumas almas generosas organizarão campanhas de doação, mas os que mais têm recursos, inclusive muitos banqueiros e rentistas, darão de ombros.

_ Eu sei o que a fome provoca. Quantas criaturas ainda morrem de fome, com tantos alimentos produzidos!

_ Seria simples. Já lhe propus quando se atreveu ir à Terra como Jesus: há tantas pedras no mundo. Ordena-as que se transformem em pão.

_ E já lhe respondi: não é só de pão que vive o ser humano. Eu criei toda a Terra, com campos de cultivo por ela toda, estimulei a inventividade na criação de todo o maquinário, de todas as redes de distribuição e comércio, e a humanidade não consegue criar meios de dar a cada família recursos com que comprar sua comida? Minha Palavra é que deve tocar os corações para atitudes mais solidárias. A liberdade que dei a meus filhos e filhas, não a tomarei de volta. Cabe a eles encontrar fórmulas de acabar com a fome, de distribuir o pão e os peixes, multiplicando-os.

_ Continuas iludido com sua criação, não é? Há dois mil anos seu Jesus lhes deu o caminho, mas os que têm poder e inteligência preferem o da acumulação. Verás que a fome matará muito mais do que o novo vírus.

_ Os pesquisadores se debruçarão em seus tubos de ensaio e logo encontrarão uma vacina, um modo de evitar a propagação. Os estudiosos das ciências sociais descobrirão formas de combate à desigualdade e de redistribuição da renda universal. E todos sairão mais fortes e solidários ao fim dessa pandemia.

_ Faça-me rir, Deus! Quando o número de mortes começar a cair, campanhas pagas pregarão o fim do isolamento social e a volta desenfreada do consumo, os governos cortarão verbas da saúde e saneamento, das pesquisas, da educação. Os cientistas, principalmente os sociais, serão demonizados novamente, e tudo voltará à égide dos princípios econômicos, do livre mercado, e as pessoas continuarão a morrer de fome, invisíveis.

_ Dessa vez não será assim. As pessoas têm recebido informações suficientes a que percebam a necessidade de mudança radical em seus modos de vida. Elas lutarão por uma nova sociedade, em que todos tenham condições adequadas de vida, um lugar para morar, um trabalho decente, uma renda suficiente a suas necessidades básicas, e exigirão dos governos uma mudança de postura, políticas sérias que promovam uma redistribuição da renda e o respeito ao meio ambiente.

_ Faça-me o favor! Basta que os poderosos patrocinem fake news dizendo que essas ideias são comunistas, que essas pessoas querem tomar o poder do povo, acabar com as religiões, e todos esses idealistas serão de novo marginalizados. Se mandasses Jesus de novo, eu o mataria em três dias. Bastaria estimular a propagação de mensagens por WhatsApp e outras mídias, com imagens dele abraçando prostitutas, socorrendo bêbados e drogados nas ruas, indo às casas de esquerdistas, jogando ao chão os recipientes de coleta de dinheiro, chaves de carros e outras doações nos templos. E você iria ver a população que não lê, nem mesmo sua Palavra, revoltar-se contra o seu Messias e o cravejar de tiros nalguma praça abandonada, antes que sua pregação chegasse aos ouvidos das pessoas.

_ As pessoas vão ficar mais atentas às mensagens recebidas, irão verificar a fonte, pesquisar, inteirar-se dos fatos. Irão perceber que não precisam se deixar enganar pelas propagandas de incentivo ao consumo desenfreado, que podem ter em suas casas apenas o necessário, que podem passar mais tempo em suas casas, que podem reconquistar a atenção dos filhos, irmãos e demais membros da família. A família sairá mais fortalecida dessa convivência em suas casas.

_ Mais um ledo engano. As pessoas querem glória e poder. Seu Jesus foi idiota ao não aceitar minha proposta. Se Ele tivesse me adorado, hoje seria um youtuber com milhares de seguidores. Você acha mesmo que os pais continuarão a ter tempo para seus filhos depois do fim do isolamento social? Eles voltarão com tudo em sua ambição de conquistar mais e mais. Trabalharão doze horas ou mais por dia para comprar o melhor carro, o melhor smartphone, para dar a seus filhos o melhor aparato tecnológico. Tudo será de novo uma luta velada por glória e poder. Eu lhes prometo isso. E cumpro. Quanto mais a pessoa se destaca na sociedade, mais se torna individualista, mais quer acumular, para um dia ver seu nome estampado na Forbes como o mais novo bilionário do planeta. Eu sei, muitos não conseguirão. Não importa, tornar-se um milionário também é bom. A tantos faltará trabalho, comida, condições sanitárias? E daí. A glória e o poder não podem ser para todos. Se fosse, que graça isso teria?

_ As pessoas irão redescobrir que devem adorar apenas ao Senhor, teu Deus.

_ Senhor, a tentação do poder é muito mais forte. Mesmo nas suas igrejas, o que predomina é a luta pelo poder. Quantos fiéis brigam entre si para ver quem tem a melhor religião? Quantos acreditam em falsos pastores, que sugam todas as economias dos fiéis e se enriquecem prometendo curas que não são capazes de entregar? E o seu povo não quer ver. As pessoas preferem ser enganadas a ouvir verdadeiramente a sua Palavra; elas não querem que se desvende sua cegueira.

_ Na quaresma elas vão expiar seus pecados, vão se reconciliar com o seu Deus.

_ Piedade! Nem o seu Papa queridinho está conseguindo isso. Eu deixarei o Vaticano deserto. Francisco pregará no vazio. E vejas que já há cardeais e católicos de prestígio que não querem perder sua vida de luxo. Por isso, apoio a luta deles contra o seu Francisco, que logo será taxado por muitos de comunista, e toda essa pregação dele por mais igualdade será colocada à prova.

_ Ele tem conseguido um ecumenismo que não tinha sido alcançado ainda. Tem dialogado com todas as religiões, não somente as cristãs, e desse diálogo sairá uma proposta de todas as igrejas para a construção de um mundo mais justo e humano.

_ Alguém desse grupo tentará ser o mais poderoso. Haverá disputas por fiéis, e tudo se perderá de novo. Por que achas que os governantes, de direita ou de esquerda, demonizam os do outro lado? Por poder. A grande maioria dos políticos, de direita ou de esquerda, quer apenas se perpetuar no poder. E a cegueira das pessoas que não leem bons livros não lhes permite perceber. Isso jamais mudará, Senhor.

_ Quando as pessoas descobrirem que estou no coração delas e não nos templos, e que em cada pessoa há um irmão da criação, seus olhos se abrirão.

_ Sabes bem que isso não irá acontecer. Então lançarei, de novo, a Ti a terceira tentação. Se és o Todo poderoso, lança-te daqui à Terra, como um foguete a cair sem escudo. Sua luz intensa queimará toda a Terra e então poderás reinar sem se preocupar com tanta gente. Poderás, enfim, gozar o descanso eterno, como Deus do universo, esquecendo-se desse projeto fracassado de criar seres à sua imagem e semelhança.

_ Jesus, meu Filho amado, não me tentou. E com isso, você o deixou em paz. Ele se deixou matar pelos homens de sua época, para que a humanidade acreditasse que somos Um só. E tantos acreditam e vivem esse plano de amor.

_ E a maioria apenas finge acreditar. Continuam praticando os mesmos erros, ferindo diariamente seus irmãos, explorando-os no trabalho, no consumo e em tantas outras situações.

_ A minha Palavra estará com todos, sempre. Muitos a lerão e a compreenderão, e isso fará com que um dia não haja mais necessidade de tantos templos e órgãos de governo. As pessoas serão solidárias e todos terão o mínimo a preservar sua dignidade. Haverá uma só família, a família humana.

_ Passado o susto dessa pandemia, sabes bem que o deus dinheiro retomará todo o seu poder. A essa tentação a maioria não tem forças para resistir. E seu velho projeto novamente estará por um fio, até a próxima desgraça: uma pandemia, uma guerra ou uma simples crise econômica.

_ Eu sei..., mas nunca abandonarei a minha criação. Enquanto houver um coração a ser tocado para a formação de uma comunidade universal, soprarei minha Palavra. Meu Santo Espírito estará com todos, agindo em silêncio.

_ Você não desiste mesmo dessa humanidade...

_ Jamais!

Findo o diálogo, o diabo dali partiu, cônscio de que tinha criado um vírus mortal que finalmente colocaria a humanidade de joelhos.

Deus, bondade infinita, deixou-o partir e se compadeceu de sua ingenuidade, ao pensar que realmente ele, o representante do mal, tinha criado um vírus, e que este ainda terminaria com a solidariedade humana, a única que de fato ainda impedia a ele, diabo, de estar no comando da Terra. Deus percebeu a mesma falha estrutural no plano diabólico, a de apostar na velha luta entre o bem e o mal, teve misericórdia de seu maniqueísmo, e passou a remodelar o projeto da vida humana, oferecendo-lhe uma percepção sensorial melhor do valor da solidariedade, única fórmula viável de se reconstruir a humanidade conferindo a todos sua dignidade essencial. Com isso, o protótipo de ser humano iria se aperfeiçoando até atingir, pela fraternidade, o plano de amor universal. Neste, não haveria vírus, doença ou fome que pudesse assolar a criação. E Ele viu que tudo ainda era muito bom.

Ribeirão Preto, 12 de abril de 2020.

Pepe Ribeiro
Enviado por Pepe Ribeiro em 20/04/2020
Reeditado em 20/04/2020
Código do texto: T6923211
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