A BIENAL DO CAPIROTO
Imagina se o seu último dia de vida fosse agora, qual seria a última lembrança que você levaria desse plano terrestre? Você já parou para pensar nisso? Nunca havia pensado nessa questão, entretanto, isso me passou pela cabeça num voo para o Rio de Janeiro rumo à tarde de autógrafos na Bienal Internacional do Livro.
Havia feito minha mala de viagem uma semana antes, verifiquei umas 3 vezes se não havia me esquecido de nada. No dia do embarque sai de casa exatamente às 3:30 em direção ao Aeroporto de Congonhas, fiz o check-in e aguardei o embarque do voo que ocorreria às 6:10 da manhã. Estava feliz pois dessa vez uma amiga que eu não via há 6 anos também estava à caminho e ficaríamos no mesmo quarto de hotel, iriamos para a Bienal e aproveitaríamos os 3 dias juntas.
Estava ansiosa por reencontra-la e mais ansiosa ainda pela tarde de autógrafos. Assim que o avião decolou fiquei esticando o pescoço para observar a paisagem, como estava na poltrona do meio tinha que dar aquela esticadela de pescoço e olhos para poder contemplar a vista aérea das próprias nuvens e de tudo mais que desse para observar. Sempre me emociono e divago quando observo o céu, as nuvens e a vegetação do alto, mas toda minha contemplação foi interrompida e em uma fração de segundos tudo mudou.
Percebi que um odor extremamente fétido havia contaminado o avião e meus devaneios poéticos e contemplativos foram comprometidos por um odor que provavelmente havia feito uma longa viagem, passando por um esôfago, recebendo enzimas em um estomago, percorrido um duodeno, passeado pelo jejuno, escorregado no íleo e desembocado em um orifício rugoso cujo nome altivo não quero pronunciar, pois o proprietário da iguaria elástica deveria estar com o equipamento danificado em virtude do cheiro mortal difuso lançado em pleno inicio de voo.
À minha direita uma moça parecia estar com problemas intestinais seríssimos e sua flatulência infernal impregnou minhas narinas, o fedor era por demais de catinguento. Senti náuseas pois não havia tomado sequer um copo de água pela manhã. O odor ligeiramente fétido era semelhante a um misto de vegetais de qualidade duvidosa, pude perceber que o gás era composto de ovos estragados, repolho velho, couve flor com fungos, brócolis amarelado e couve amanhecida de 3 dias, provavelmente sobras de feijoada trazidas da casa da sogra e frango frito com muita pele. Tentei disfarçar meu mal estar e virei minha cabeça cerca de uns 13º a esquerda e para o meu total desespero, o cidadão à minha esquerda, discretamente levou sua mão à boca, creio que numa tentativa hercúlea de conter um desgraçado de um arroto.
Seu esforço foi louvável, porém inútil, o malfadado odor de pão francês amanhecido com fatias generosas de mortadela vencida, compradas no boteco da esquina pairavam no ar como névoa ou brisa de fim de outono. Fiquei sem saber o que fazer, travei a respiração por alguns segundos e quando tornei a respirar, parecia que aquela dupla vinda não sei de onde estava programada para me assombrar e a sinfonia de gases superiores e inferiores eliminados com diferença de 4,5 segundos de um para o outro estava literalmente à todo vapor.
De repente uma pequena turbulência nas alturas me deixou em estado de quase pânico, imaginei que o avião pudesse cair e foi exatamente nesse momento que me pus a pensar sobre a última imagem que eu levaria comigo antes de morrer. Confesso que o desespero tomou conta do meu ser e comecei a rezar para que Deus não permitisse que aquele avião caísse, imaginem só, eu morrer tendo como última lembrança o odor da flatulenta a minha destra e o arroto à minha esquerda. Isso não seria justo e honroso para uma pessoa como eu, seria uma das piores mortes que um ser humano poderia ter, uma morte inglória, sem honra alguma. Aquilo vão seria justo, não merecia uma desonra como essa. Como uma poeta se apresentaria no além ou na porta do céu tendo como lembrança tal afronta? Sou poeta, expresso os mais nobres sentimentos em meus escritos! O que direi a São Pedro quando ele me perguntar sobre qual minha última lembrança da Terra? Seria muito humilhante dizer que era a “disgreta peleta” do pum infernal de uma jovem senhora a direita e o tenebroso arroto de sanduiche de mortadela do jovem ruivo à minha esquerda! Definitivamente isso não poderia estar acontecendo comigo, meu último dia de vida não poderia terminar de forma tão desastrosa e desonrosa. Confesso que não temo a morte, mas nesse dia fiquei em estado de total desespero, jamais imaginei que pudesse morrer em uma situação como essa.
Assim que ao gases pararam, dissipando-se no ar e a queda do avião graças a Deus não ocorreu fiquei imaginando que tipo de ser humano come às 5:00 da manhã pão com mortadela? Não consigo imaginar que uma pessoa em sã consciência cometeria tal infâmia. Enfim, cheguei ao Rio sã e salva, mas se você pensa que as coisas terminaram por aí está enganado, quando as coisas começam mal, pode piorar um pouco mais.
Fui para o hotel, entrei no quarto, guardei a mala e retornei ao saguão do hotel, tomei um café matinal e fiquei aguardando minha amiga chegar. Depois de nos abraçarmos e matarmos a saudade, decidimos ir conhecer o Jardim Botânico. Caminhamos duas horas por entre a bela e vasta flora do local, retornando exaustas para o hotel.
No dia seguinte fomos à Praia vermelha, depois nos dirigimos para o hotel e nos prepararmos para o lançamento do meu livro Desejos à Flor da Pele, um livro de poesias sensuais e eróticas. Saímos do hotel cerca de 14:00, pois os autógrafos teriam inicio às 17:00, assim teríamos tempo de visitar outros stands. A distância do hotel para o local do evento era pequena, cerca de 12 minutos à pé ou 7 minutos de carro.
Aquele percurso tão curto se transformou em uma eternidade, creio que utilizar o termo Odisseia seria mais apropriado pois os simples 7 ou doze minutos duraram das 14:00 às 16:45 para ser mais precisa. O transito até a Bienal havia sido comprometido por diversos fatores, logística de transido inadequada, excesso de veículos nas imediações do evento e por um fato inusitado, um Youtuber havia arrematado cerca de 10 ou mais mil títulos de uma obra para distribuir gratuitamente na Bienal, ou seja, o transito estava um verdadeiro rebu.
Consegui entrar no local e cheguei no stand da livraria faltando 5 minutos para encerrar minha tarde de autógrafo. Conclusão, ela não ocorreu. Aproveitei o que havia sobrado de mim e do meu humor para passear nos corredores e apreciar as novidades do mercado editorial. Mas aquele dia a Lei de Murphy parecia estar atracada em minha cacunda como um daqueles xipocós que não desgruda de você. Pasmem, o que sobrou de mim naquela fatídica tarde de autógrafos estava faminta por uma batata assada, que por sinal, quando chegou minha vez de fazer o pedido, ela havia acabado. O estomago roncava feito motor de Scania L111 prestes a entrar em óbito e me restava apenas uma coisa, beber uma água e retornar para o hotel.
E para fechar com chave de ouro, não poderia encerrar de forma diferente. Chamamos um Uber e chegamos no hotel. Tomamos um banho revigorante e liguei a TV para assistir ao noticiário. Para a infelicidade do povo brasileiro, as notícias eram as mesmas, assaltos, homicídios, incêndios em coletivos, tiroteio, as mesmas notícias de sempre. Mudei de canal e fui para documentários. Vai vendo a tragédia grega, o documentário falava sobre queda de aviões e minha viagem de retorno seria na manhã seguinte. O assunto principal sobre a queda de aviões era sobre excesso de bagagem/peso, tentei não me preocupar e decidimos deligar a TV, falarmos sobre o livro de crônicas que minha amiga estava lendo. Rimos bastante e fomos dormir.
Que dia! Que noite! E que Bienal do Capiroto foi essa!
"VANA MILETTO"