FUNDAMENTALISMO

FUNDAMENTALISMO

CONTRA PORTUGAL, URUGUAI, ARGENTINA ...

Nelson Marzullo Tangerini

Já ia esquecendo, na gaveta, esta minha crônica, que revela bem a mente de pessoas absurdamente preconceituosas e ignorantes.

Este achado merece ser publicado:

Viajava de ônibus, um dia desses, quando me encontrei com uma quase vizinha do bairro, moradora de uma rua próxima. Kardecista fundamentalista, ela puxa conversa e inicia o diálogo:

- Como você está.

Respondi-lhe que bem.

- O que anda fazendo?

Disse-lhe que estava lançando um novo livro, Nestor Tangerini e o O Café Paris, pela Editora Nitpress, de Niterói. E complementei, dizendo que uma editora do Porto, Portugal, estudava a possibilidade de lançar um livro meu lá.

- Eu odeio Portugal. Tenho asco de português. Sinto arrepio quando ouço no rádio aquelas músicas portuguesas.

Perplexo, perguntei-lhe por que tinha tanto ódio dos portugueses.

- Eles roubaram todo o ouro do Brasil. E dizimaram os índios que habitavam nossas terras.

Perguntei-lhe, então, se ela era descendente de portugueses. E ela me respondeu dizendo que, graças a Deus, era descendente de espanhóis.

Retruquei, dizendo-lhe que os espanhóis também levaram todo o ouro da Colômbia, do Peru, do México, etc e tal, e que, em questão de holocausto indígena, “los españoles” mataram muito mais índios do que os portugueses – inclusive, com requintes de crueldade. Sem falar na crueldade das touradas.

Ela continuou falando:

- Tenho horror àquela gente. A inquisição foi uma monstruosidade. Em vida passada fui queimada numa fogueira em Lisboa.

Fi-la crer que a Inquisição também aconteceu em Espanha, e que foi ainda pior que em Portugal. Famílias judias de Espanha tiveram de fugir para a Holanda, a Turquia e para o norte da África, para não verem de perto o fogo da inquisição.

A conversa terminou ali, pois via que não conseguiria mudar aquela cabeça dura como pedra. E segui meu caminho, com a esperança de não ser tostado numa nova fogueira, em futuro próximo.

Numa palestra no Museu do Índio, certa vez, ouvi dizer que um índio da América Central, creio que no México, ante o Tribunal da Santa Inquisição espanhola, preferiu ir para a fogueira [foi queimado vivo] a ir para o céu com os bondosos cristãos espanhóis.

Quanto ao roubo de “nossas” riquezas, se formos estudar bem, “com paciência de vigário”, como dizia o poeta Nestor Tangerini, a nossa “História Pátria”, veremos que, depois do Grito do Ipiranga, brasileiros roubaram muito mais que os lusitanos. Os mensalões, tão comuns em terras brasileiras, são antigos companheiros “nossos”.

Há que se questionar o pronome possessivo “nosso”, tão usado pelos ufanistas, os exaltados nacionalistas de plantão, uma vez que, exceto os índios, verdadeiros donos da terra, todos somos europeus ou africanos nascidos nas Américas. Os primeiros, vieram para extrair tudo o que na terra dava; os negros, caçados como animais e escravizados, vieram para trabalhar exaustivamente, debaixo de porrada – e de graça – para os europeus. Os índios, tão cantados pelos escritores e poetas românticos [e longe da realidade], estavam aqui antes de nós. Então, não as riquezas não são nossas; não são propriedades nossas. É muito difícil colocar isto dentro de mentes obtusas, que acham que os negros devem ser subalternos, abdicar de suas terras quilombolas, e os índios devem ser exterminados e perder suas terras e suas florestas.

Tal ignorância, tal intolerância [e isto se chama nacionalismo ufanista e fundamentalismo] levou-me a escrever esta crônica, na qual acrescento uma outra pérola, colhida no bairro onde moro.

Fui um dia desses à padaria mais próxima para tomar o café da manhã e me encontrei com um morador do bairro. Eu não o via faz anos. Notei que ele não queria falar comigo, por causa de meu posicionamento político, minhas ideias revolucionárias e libertárias. Olhou para todos os lados, fingindo não me ver, mas foi obrigado a me encarar e falar comigo, uma vez que o estabelecimento era pequeno.

- Tudo bem?

- Tudo.

- O que você anda fazendo?

- Estou lançando um novo livro, “Nestor Tangerini e o Café Paris”, pela Editora Nitpress, de Niterói.

Ele sorriu com um risinho forçado e disse:

- Parabéns!

- Estou te convidando para o lançamento.

Como ele nada falou, prossegui:

- No dia 11 viajo para Montevidéu, Uruguai.

- Você não tinha um lugar melhor para ir.

- Estou indo ao Uruguai por causa de sua literatura.

- Eu odeio Uruguai e Argentina. Da Argentina, gosto só dos vinhos. Odeio aquela gente.

- Mas há bons escritores argentinos e uruguaios. E aquele povo foi vítima de uma feroz ditadura militar.

- Odeio aquela gente.

- Sou professor de Literatura e gosto dos escritores uruguaios e argentinos. Eles são muito bons.

- Isso é sua opinião.

- Não, eles são mundialmente reconhecidos. Jorge Luís Borges é um deles.

- A unanimidade é burra.

Encerrei a conversa, dizendo-lhe:

- Pessoas como você também são burras.

Enfim, citando um ditado sempre falado pela minha velha mãe, não se deve caçar piolhos na cabeça de que os quer cultivar.

Dias depois, um amigo me trouxe uma revista antiga, Época, contendo um artigo sobre o temperamento de cada escritor. Uns são falantes; outros, fechados, taciturnos, casmurros.

Certamente, alguns escritores acabam se fechando e falando pouco. Principalmente com os iletrados como esses jumentos, enquanto outros acham que podem salvar a humanidade inteira..

Eu, pessoalmente, não consigo mais conversar com idiotas.

Enfim, somos o resultado do produto deste liquidificador.

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 29/04/2020
Reeditado em 29/04/2020
Código do texto: T6931928
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