LEMBRA DAQUELA TUA ALUNA LOUQUINHA?

Lembra daquela tua aluna louquinha?

De repente lembrei dela. Daquela perturbadora pergunta, mas também dela, da Vivi (troquei o nome para preserva-la).

Estávamos no ano de 1999. Fui até o portão receber a aluninha que estava chegando. As aulas já haviam começado e aquele era seu primeiro dia de aula, na turma da alfabetização. Vi uma menina morena de cabelos cacheados magricela despedir-se da mãe e vir em minha direção. Carinhosa, abri os braços para abraça-la e disse: "Seja bem-vinda, eu sou tua nova professora"!

Qual não foi minha surpresa quando ela passou reto como se não tivesse me visto nem ouvido. Segui atrás dela e vi que entrou na sala errada e perguntou: 'É aqui a sala da primeira série?" Eu respondi: "Não Vivi, não é esta." Ela me ignorou e entrou na outra sala que também não era a dela, fez a mesma pergunta e de novo me ignorou. Por fim entrou na próxima sala que sim, era a nossa sala. Já percebendo que havia algo "errado" com ela providenciei que sentasse bem em frente à minha mesa. Aquela era com certeza uma menina "diferente"!

No intervalo para a merenda sem demora conversei com a orientadora e pedi a ficha preenchida pelos pais para ler o que havia ali. Então vi que ela tinha atendimento em quase todas as áreas necessárias para alguém com algum problema. Ali tinha o nome do neurologista, psicólogo, psicopedagoga, pediatra e a fonoaudióloga. Aquilo me tranquilizou.

Nos dias seguintes apesar do comportamento estranho, notei que era extremamente inteligente, desembaraçada e com um desenvolvimento bem além da sua idade, 6 aninhos. Não demorou muito e começaram as queixas sobre ela. Os coleguinhas reclamavam que estavam sendo agredidos no intervalo. As mães vinham reclamar e exigiam providências e a mãe da Vivi procurava nunca se encontrar comigo. Percebi que estava chateada com a situação e não queria falar comigo. Embora jamais a tenha chamado. Eu queria resolver sozinha porque era só aquele o problema. No resto eu estava obtendo êxito. Aprendia tudo com rapidez! Só que conversar com ela não resolvia. Ela parecia não entender do que eu falava. E a situação foi ficando insustentável. Um dia, ela passou mal e vomitou. Antes que eu pudesse fazer algo ela colocou na boca e engoliu. Minha colega que estava passando viu aquela atitude inusitada. No dia seguinte, pela primeira vez em muitos meses ela faltou à aula. Aproveitei e fiz uma reunião com as criancas na tentativa de descobrir o que acontecia entre eles e a Vivi. Todos falaram quase a mesma coisa. Ela não sabia brincar. Só beliscar e dar pontapés. Por isso eles a excluiam. Não convidavam para brincar. Então, talvez por algum sopro divino, matei a charada. Ela ficava magoada pela exclusão. Então contei a eles que aquele era o problema e que sim, ela sabia brincar. Só que brincava "diferente". Combinamos que era seria convidada para brincar e que brincaria do jeitinho dela, só que junto! E passei a monitorar o recreio por vários dias.

Sim, matei a charada e nunca mais houve qualquer problema. Porém, notei que à medida em que se aproximava o final do ano as professoras da segunda série, (hoje é segundo ano), foram ficando inquietas e falavam: " Por favor, não me manda aquela menina estranha!" ou, "Eu não quero aquela menina que come vômito"! Eu ficava magoada. Eu amava a Vivi. Ela era muito inteligente! E estava alfabetizada. Só não copiava nada do quadro. Mas eu jamais a impediria de ascender à próxima série. Ela sabia tudo que precisava saber! Até mais!

O ano letivo terminou e no último dia vi uma mulher magra, morena e alta vindo em minha direção a passos decididos. Ela parou em frente à mim, me deu um abraço demorado e disse:" Muito obrigada por tudo, professora"!

Virou -se e foi embora.

Nunca mais a vi. Nem a Vivi. Soube que o pai havia sido transferido para o Rio de Janeiro.

No ano seguinte, a Laura chegou. Dois anos depois foi diagnosticada com autismo. Lendo sobre autismo numa busca desesperada por entender o que se passava com a Laura lembrei da Vivi. Ela era autista! A mãe nunca contou e jamais falou comigo porque tinha medo da filha ser impedida de estar numa escola regular. Até porque os primeiros meses haviam sido difíceis para ela junto aos outros país. Para mim também!

A Laura era autista. E estava com dois anos. Não contei para ninguém na escola. Não sabia como contar sem abrir um berreiro. Então um dia, na hora do intervalo, a orientadora sentou em frente à mim e disse:" LUBIA, lembra daquela tua aluna louquinha?"

Até hoje eu não sei o que ela falou depois desta pergunta. Foi como se alguém tivesse me dado um soco no estômago. Fiquei ali. Ouvindo sem ouvir nada. Tudo doendo e rodando. Só lutei pra segurar as lágrimas! "aluna louquinha"? Meu Deus! A orientadora da escola disse "aluna louquinha"? A Vivi? Tão inteligente! Tão querida! Só eu enxerguei a Vivi como ela era? E a Laura? Seria considerada uma "aluna louquinha"? Desprezada por todos? Ignorada?

E a Laura foi para a escola no ano seguinte. Mas esta é uma outra história!

Ah, esqueci de contar. Deus me mandou a Vivi para que eu conhecesse uma menina autista. Ou para ver como eu iria "me sair" com uma menina autista. No ano seguinte me mandou a Laura!

Histórias de uma mãe de autista

LUBIA AGUIAR