Hoje.

Eu bem que estou tentando sobreviver à angústia dos tempos de pandemia com alguma esperança. Que ao menos uma parte da humanidade compreenda a importância do respeito à vida, a necessidade da prática do altruísmo, das boas relações e – esperança demais – do abandono das práticas do ódio, do rancor e das rivalidades insanas por qualquer coisa.

Mas hoje... hoje é diferente. Bem diferente.

A carta de despedida do grande ator Flávio Migliaccio me feriu como cidadã, pessoa apaixonada pelas artes, pelo teatro e pela vida.

“Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é (…) como tudo aqui. A humanidade não deu certo. Tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este e com esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje”.

Fui, anos atrás, atuante no trabalho da prevenção ao suicídio e sei, pelo menos teoricamente, o que é essa dor, a sua dimensão e complexidade. Ouvi inúmeros desabafos de pessoas nos seus limites extremos. Quanta dor! Quanta aflição! Quão estarrecedor é se enxergar engessado, sem respiro, sem luz nem perfume, sem nenhuma promessa de primavera ou de algum abraço sincero! Um chão esburacado de cimento cinza... a vida ficou dessa cor.

Essa citação da carta derradeira do sr. Flávio diz muito , diz quase tudo sobre esses tempos infernais que parecem que não terão fim. Tempos de ódio escrachado, de deboche em relação à morte alheia, de defesa daquela fala infame e diabólica de um psicopata inflamado: “o bom seria matar logo 30 mil” .

Sr. Flávio, compreendo que tenha sofrido muito. Intensamente! Na alma. Muitas vezes, querido, a vida dói em toda a sua profundeza, ofendendo a essência, sangrando todas as células, retirando o brilho do olhar, o humor, a energia para levantarmos e agradecer por mais um dia...

Siga em paz, sr. Flávio. Tenho certeza de que a sua decência não poderia fazer parceria com toda a vertiginosa vergonha que estamos tendo que enfrentar. Reconheço a dificuldade, mas ela existe e ainda tenho esperança, alguma esperança. Tudo vai passar. Os grandes carrascos, descarados sacripantas, mentirosos e grosseiros fedem na história.

E acredito em outras vidas.

Que a espiritualidade te acolha amorosamente.

Da mesma forma amorosa tenho certeza que o nosso Aldir Blanc também será recebido.

Não sei dizer quantas vezes levei para a sala de aula o seu “O bêbado e o equilibrista” e , com paixão, apresentei um tempo de escuridão aos meus jovens alunos, mas que havia serenidade e espírito de luta por parte de intelectuais, artistas e trabalhadores. Era necessário se recriar o país, com amor, resistência à imbecilidade com força, energia, coragem e muita poesia.

Também você, Aldir, siga em paz e que seja feliz e cante, cante muito. Cante para São Francisco e diga a ele da sua visão social, do seu compromisso com a vida , da sua busca por justiça, por um país mais vivo, mais digno e consciente.

Tenho certeza de que o nosso poverello de Assis vai sorrir afetuosamente prá você.

Sigam em paz e na luz afetuosa vocês que lutaram e contribuíram muito para que esse país fosse decente.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 04/05/2020
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