O COMIDA DE ONÇA

O COMIDA DE ONÇA.

Do desarranjo um novo arranjo

Autor: Moyses Laredo.

Lembro-me de um caso que me fora contado, quando passei uma temporada no interior, sobre um caçador que se perdeu na mata, já haviam se passado três semanas sem dar notícias, todos já o tinham como desaparecido, alguns apostavam que fora comido por onças, muito abundante naquelas bandas. O tempo se passou e nada do Firmino, a mulher dele quando se convenceu de seu desaparecimento, procurou o padre da pequena paróquia para encomendar uma novena, aliás, foi o padre mesmo que insistiu para que fosse feita, disse pra família que, pelo sim ou pelo não, era melhor do que deixar a alma do “falecido” penando pelo purgatório, ainda mais que, a essa altura, o Firmino, já deveria ter passado pelos tratos intestinais das onças, e que, até já poderia o ter sido digerido! Reforçando mais, para o horror da família. O padre foi cruel, concluiu que ele, o coitado, já deveria estar espalhados aos “montinhos” por aí, no caminho das ditas onças. Que triste fim, pra aquele homão cheio de preguiça, virou bosta de onça. Repetiam os vizinhos inconformados, - Ele não merecia isso! Todos também o davam como certo, de que, o pobre homem havia de fato, virado comida de onças. Histórias assim é que não faltavam por lá, cada um sabia de ataques de onça, uma mais cabeluda do que a outra. O pessoal da cachaça que frequentava a vendinha do seu Mané, até chegou a botar um apelido no Firmino, “comida de onça”, abreviando depois, para simplesmente, “seu comida”.

Dizia o cumpadre coroné Hernestino, o mais bem situado deles, tinha uma roça grande e alguns animais (cavalos) e umas dúzias cabeças de gado, que por ali, era considerado rico, - “Seu Mané, me diga uma coisa, o senhor tem notícias do “seu comida”?” – “Tenho não cumpadre, mas amanhã já vai fazer 15 dias, ... tem mais esperança não! ... a muié dele até já procurou o padre” ... - “Já soube, já soube seu Mané, ela encomendou uma novena, não foi?” – “Foi não coroné! Ela procurou foi o padre foi pra pedir a bênção dele pra se juntá mais o Zé das tripas”. – “E foi ômi? E como o senhor soube disso?” – “Marrapá, e o padre não molha o bico aqui?” – “Mas sim, o Zé das tripas não é aquele da ferinha que vende “fato” de boi?... e ele não é casado?” – “Era cumpadre!... ele largou da Dagoberta, assim que soube que a onça tinha comido o seu Comida”. – “Ah! se eu soubesse, topei ontem mesmo com a dona Dagoberta na baixada do Catolé, com uma ruma de maniva no lombo, seu minino, a bicha ainda dá pra “espremer” um caldo, e olhe, que mocotó ela tem, de fazer inveja” – “Deixe disso ômi, se a sua mulher sabe, vai dá confusão, o senhor bem conhece ela, é braba que nem uma cascavel-de-quatro-ventas” – “E o senhor seu Mané, já não sabia não?” – Sabia do quê, ômi?... se é eu que sempre dou conta primeiro, de tudo por aqui!” – “Ah! seu Mané, eu não aguentava mais ela não, a bicha deu pra cheirar os fundos das minhas cuecas para ver se sentia catinga de “leite de pica”, o senhor já viu isso?” – “Vi não senhor, se a minha fizesse isso, caia a venta dela na hora, ou pelo bafo, ou pela mãozada.... mas e agora, como ficou a sua situação?” – “Eu já me larguei dela, e foi ontem mesmo!” – “Estou morando na casa do filho, lá na baixada, no “barreiro das antas” ..., - “Mas é longe coroné”, - “É nada! Ando no “peidão”, o meu alazão” – “Mas me diga, e a dona Dagoberta, o senhor sabe por onde anda, seu Mané?” – “Sei não, mas ela não tarda aparecer por aqui, eu sempre anoto pra ela uma xícara de açúcar, pra adoçar o mingau de puba dos curumins dela, e hoje é dia”. – “Não me diga, e a que horas mais ou menos, ela vem?” – “Depois das cantorias do capitão do mato, (pássaro) coisa de umas três da tarde” – “Pois então, lhe diga que hoje, quem vai pagar o açúcar dela, pois sou eu, lhe dê logo um quilo daqueles bem alvinhos, o mais caro, e bote também sua conta do caderninho, pra mim”. – “Pois tá, se é assim, vou já somar, o senhor é quem manda coroné”. – “Me diga uma coisa cumpadre Hernestino, e se ela quiser mais alguma coisa?” – “Le avie tudo que for do seu agrado e desejo, diga-lhe que a ordem é minha”.

Dagoberta quando chegou na vendinha, tomou o maior susto desse mundo, - “Mas foi o seu Hernestino mesmo, foi?” – “Se foi!” – “Parece que ele está arrastando uma asa pra senhora”. – “Vixe seu Mané, eu não sou disso não”. – “Mas eu só estou contando, cumadre. Ele soube que o cumpade Zé largou da senhora e se compadeceu, não se avexe comigo não freguesa”. – “Sei não seu Mané!” – “Mais e aí?..., a senhora vai aceitar a caridade do coroné, ou eu devo dizer pra ele que a senhora recusou?” – “E eu posso recusar, seu Mané, o Zé me largou com um magote de menino pequeno, tudo ainda remelento”. – “Diga a ele que agradeço muito, e que logo que eu vender a minha roça de mandioca, eu pago a ele”. – “Mas cumadre, ele não quer paga não, me disse até que a senhora tem conta livre aqui, é só pegar o que quiser que anoto pra ele”.

Dagoberta saiu da vendinha com um rancho de respeito, que mal conseguia carregar, botou tudo na conta do seu Hernestino. Se foi ele mesmo que pediu, que aguente, pensou seu Mané, vendo ela arrastar no ombro, o saco das compras, e sair varadouro a baixo.

Seu Hernestino quando soube do estrago que fez a Dagoberta, deixou escapar um pqp meio engasgado, mas, o que está feito não tem mais jeito. Nesse mesmo dia passou pela casa da Dagoberta, estava de montaria, bateu palmas. – “Comadre, comadre, ô de casa”...a Dagoberta surgiu toda arrumada, tinha tomado aquele banho de cuia com água da flor de laranjeira, sentou numa bacia de água com pedra hume, (um adstringente e antisséptico) por mais de meia hora, lavou os cabelos negros e longos, com baba da folha espremida de babosa, que deixavam eles mais brilhosos, botou o vestido de missa, encurtou um pouco na canela, como se já esperasse pelo coroné e perguntou inocentemente, toda acanhada, da meia porta. – “O que foi, seu Hernestino?” – “Nada não comadre, só queria saber se a senhora gostou das compras!” – “Se gostei?...e foi é muito! ... se apeie coroné, venha tomar um cafezinho “mais” eu, acabei de passar agorinha, com cuscuz que ainda está quentinho em cima do meu novo fogão de barro feito com lata de tinta”. Seu Hernestino, amarrou sua montaria detrás das cuieiras, longe dos olhares de quem passasse na trilha. Largou a bengala escorada no pé de pião roxo rente a escadinha da cozinha, subiu os três degraus, pé ante pé, se escorando como podia. Já dentro da cozinha, puxou um banquinho, e apreciou melhor o mocotó dela, que tanto se encantou, enquanto ela se virava para ajeitar o café, ele subiu mais o olho apreciou o tronco de canela da mulher e findou o olhar na lapa de bunda da Dagoberta, engoliu em seco, pensou, que diabos o Zé da tripas tinha feito pra perder tudo aquilo. Na mesma hora, a Dagoberta se virou com o café fumaçando no bule de alumínio, e o pratinho de cuscuz na mão, fazendo de conta que nem viu nada. Pra disfarçar o embaraço, coroné perguntou pelos meninos dela, - “Não vi nenhum?” Ela se apressou em dizer, – “Os maiores foram pra aula lá na cacimba de baixo, só chegam à tardinha e os menores, deixei com a avó deles, ela passou por aqui de canoa e pediu pra ficar por um tempo, para eu cuidar da roça mais sossegada”. O seu Hernestino, quase não conteve sua alegria, arriscou perguntar sem muitas delongas, - “Comadre, vou ser direto com a senhora, posso?” – “Só pode!”, - “Então me diga se a senhora tem gosto por mim”. Ela parecendo estar preparada para esse tipo de pergunta, disse de pronto. – “Tenho sim seu Hernestino, e aumentou muito pelo o que o senhor fez de me ajudar nas compras”. – “Então estamos conversados, amanhã mesmo eu me passo pra cá?” – “Vixe ômi, tenha calma, e não é muito avexado isso não?” – “Não é melhor a gente exprimentá se gosta do outro?” – “A senhora acha?” – “Eu acho sim”. – “E como vai ser isso?” – “Ô seu Hernestino, se passe pra dentro que eu lhe mostro já, já”. Seu Hernestino, não sentiu a mesma dificuldade que teve pra subir as escadinhas, de um pulo já se atracou na grossa cintura da Dagoberta e a empurrou de costa pra cima da cama, no quartinho ao lado, que era de tronco de mulateiro, um pau duro que nem serra corta, e na queda, ela já estava no jeito, a cumadre sabia lidar com homens. Fazia tempo pros dois, o seu Hernestino até já tinha esquecido do tempo em que se deitava com mulher cheirosa, a dele, fedia mais do que manta de pirarucu seco em quarto fechado, e a Dagoberta também, fazia tempo que não se deitava com um homem sem apanhar primeiro.

Acho que nem bem se deitaram, o seu Mané já ficou sabendo, por meio de um dos cachaceiros que frequentava a vendinha dele, quando passou de bicicleta avistou os quartos do “peidão” que tinha se arredado de trás das cuieiras e logo alarmou pra ele. – “Eu sabia!... aquele velho tarado estava rondando ela mais que urubu em carniça”, mas mesmo assim, me parece que as coisas estão se arrumando. O sumiço do Firmino, tinha é dado certo. Todo mundo se ajeitou direitinho, ele devia é ter morrido a mais tempo.

Numa tarde de domingo, já passados três semanas do desaparecimento do Firmino, em ninguém dando mais conta dele, e não é que o ômi apareceu bem à boca da noite? Estava irreconhecível, mais magro, com as roupas rasgadas, barba grande, mancando, todo lascado mesmo. Bateu na porta da casa dele, com o pedaço de pau que andava para se segurar. A muié já deitada na cama, se ajeitando para segundar com o Zé das tripas, seu novo marido, rolou pro lado, e meio assombrada perguntou. – Quem será a essa hora? – Sei não muié, disse o Zé só de cuecas, - Vai lá ver o que é, que eu me aguento aqui, ser for coisa ruim eu lasco a cabeça dele com o cabo daquela enxada ali. De novo novas batidas, a muié pegou a lamparina, foi destrancar a porta que estava com uma tramela, chegando mais perto, gritou, - Já vai, já vai, que coisa! – De lá de fora, o Firmino, falou com a voz baixa e rouca, - Sou eu muié, me acuda! – Eu quem? – Sou eu, teu marido, diaba! A muié tomou o maior susto, reconheceu o tratamento do Firmino quando queria as coisas, aí foi que pensou mesmo ser visagem, voltou nas pontas dos pés pro quarto, e disse baixinho pro Zé, - “Zé, a alma do Firmino taí, e ela qué entrar pra pegar a gente, agora o que nós faz?” O Zé nem acabou de ouvir a última palavra e vazou pela janela oposta, sumiu no trecho, correu pra casa dele. Ao chegar, foi tentar entrar, mais encontrou também a porta fechada com a velha tranca de madeira, fez igual ao Firmino, deu umas porradas firmes nela. A Dagoberta, já conhecia o modo dele, bruto não. Imediatamente rolou o seu Hernestino pro lado, que depois da primeira lapinguachada dormia em cima dela, já era seu costume, meio assustado, perguntou, - O que foi mulher? Não gostou? - A Dagoberta colocou o dedo na boca dele e disse baixinho, - “Não é nada disso não, meu véi, é o Zé que está lá fora com a faca de açougueiro dele e veio pra te matar”. Inventou isso, mais pro seu Hernestino se avexar, que ao ouvir a palavra matar, se pôs de pé, e sem tropeçar, se preparava para sair do outro lado da casa, mais ligeiro que corrida de calango. A muié respondeu pro Zé, - Te aguenta um pouco ômi, não vê que eu já estava deitada só de camisola, já vou aí. Nisso deu tempo pro seu Hernestino amarrar o cordão da cueca, entrar nas calças de suspensórios e sair de mansinho sem barulho, pegou o pangaré e se tocou para antiga casa dele. Nem quis voltar para a casa do filho, era longe demais pra andar de noite sem lanterna. Sua mulher, que chamavam de cobra-de-quatro-ventas, já estava deitada também, havia acabado de se enroscar com o Vardinho, um vaqueiro baixinho, jovem e forte que ajudava seu Hernestino na lida do gado leiteiro. O rapaz muito ágil, dali mesmo alcançou a janela e de um salto já caiu no cercado das galinhas, e por lá mesmo ficou de cócoras junto delas, quietinho até o dia amanhecer.

De manhã, tudo tinha voltado ao normal, nada mudou, cada mulher com o seu marido, e cada marido com sua mulher. A aventura tinha acabado cedo demais, que pena, quando todos estavam experimentando uma vida nova, “(...) de mais prazer e alegria, uma mudança muito estranha mais pureza, mais carinho mais calma, mais alegria(...)” (Sonhos - Peninha). Vem o Firmino do nada, acabar com tudo. A cabeça do seu Mané deu um nó, quando soube da história. O padre nem acreditou, o seu Hernestino, tinha prometido trocar as “páia” da cobertura da paróquia, por alumínio, em troca de ajeitar o casamento dele com a Dagoberta, não pode esconder uma ponta de decepção. Nessa mesma noite, os envolvidos convocaram uma reunião às pressas, inclusive com a participação do padre, tinham algo muito importante a deliberar. Nesta noite votaram, o padre foi o único que se absteve, resolveram dar um fim de verdade no Firmino! E foi o que fizeram, deram a Vardinho essa missão. O Firmino teve seu fim confirmado, dias depois, quando acharam os restos dele no varadouro das onças, lá bem dentro no oco da mata, agora sim, estava atestado, foram as onças que comeram as partes dele de verdade! Dizem que foi o enterro mais concorrido que já aconteceu naquelas bandas. Dia seguinte a vida de todos se arrumou, do desarranjo houve um novo arranjo.