Quando dormem, os girassóis

Quando dormem, os girassóis

Já saí das conversas de calçadas, dos encontros noturnos e há muito tempo não escrevo cartas.

Não tenho mais telefone residencial nem agenda com os nomes e números escritos.

Desliguei a televisão na programação aberta. Não suporto mais tanta violência, corpos enterrados e conflitos ideológicos.

Não tenho mais twitter, estou minimizando as visitas ao face, aos poucos vou saindo de alguns grupos do whatsapp, as pessoas e os bons papos estão indo como areia entre os dedos.

A vida ficou difícil, utensílio de luxo.

O isolamento proporciona o trancar-se no quarto, assistir programação de canais por assinatura, descobrir velhos livros empoeirados, dormir por dentro de si embusca de encontrar algo mais significativo.

Viver parece velho demais. A existência tem cheiro de morfo e nossas certezas andam aleatórias sobre os telhados de vidro das nossas ilusões.

Estamos na carência de boas conversas, de alegres notícias, de risadas porque acabou o verão e o vento mais frio faz cócegas na ponta do nosso nariz.

Olho para o móvel da sala e sinto falta dos "portarretratos", das fotografias desbotadas com a passagem do tempo, dos álbuns enfileirados expostos bem aqui.

Porque a vida não cabe mais em uma moldura. A vida nem cabe mais na palma da nossa mão.

Parece que tudo ficou em vão, tudo se tornou monótono demais.

Já nem ouso mais usar um celular para uma chamada e ouvir a voz do outro lado, porque estamos nos distanciando de ouvir as lamúrias dos outros.

Outros tempos ainda existia o riso, a gargalhada, as palavras trocadas que não fossem carestia, receio, temor, medo, solidão...

Nós somos o caos de nós mesmos. Não soubemos fazer o dever de casa como ensinado. O passo maior que a perna nos proporcionou meter o pé na lama.

Já nem desejo olhar no espelho. O reflexo intimida a mim. Acabo de perceber que nem sei se ainda sou o mesmo ou se há tempo me perdi de mim e nunca mais me encontrei. O cheiro do meu corpo desbotou, a minha carne é de uma outra textura, meus dedos são delicados e a minha alma vaga por aí vez assim sem querer...

A vida era tão sabida, mas desaprendeu a lição, virou pipa e perdeu a rota, não sabe mais nem que horas dormem os girassóis.

Minha vontade é de dar corda no relógio chamado coração, mas nem sei se ele ainda badala. Só escuto o ronco desse sujeito aposentado. Não quer mais amar,

; ter amigo, muito menos. Diz, quando quer, que cansou de arriscar, prefere ficar calado e economizar nos suspiros.

Não sei se abro a cortina e a janela do quarto para a claridade entrar um pouquinho ou se permaneço aqui nesse lugar escuro. Meu corpo já não se curva mais tanto e já nem quero ser empecilho para qualquer coisa. Noite passada tinha desistido de encostar o rosto no vidro da janela para inventar de criar esperança numa nova invenção.

A vida não é mais invenção, ela se esqueceu de quem é na verdade.

Eu que não quero mais conexão com essa coisa tão feia, áspera, doentia, que não me traz mais alegrias de dias melhores ou sinais de reconstrução.

Marcus Vinicius