Meu primeiro machista

Conheci meu primeiro machista aos dezoito anos. Era também o meu primeiro emprego. Meu primeiro machista disse numa mesa cheia de homens que só me contratou por eu ser ruiva e bonita, e que se eu não fosse competente pelo menos ele teria a chance de me pegar. Se isso tivesse acontecido na escola, ambiente em que eu estava acostumada a lidar com preconceito de forma educativa e pedagógica, no caso, tacando livro de História na cabeça de moleque, era o que eu teria feito.

Mas eu estava num ambiente corporativo, soterrada por escombros hierárquicos de poder. Aquele era meu machista. Aquele idiota tinha um domínio, ainda que pequeno, sobre mim. Não tive reação. Pela primeira vez, fui confrontada com algo familiar num ambiente estranho. Olhei em volta, e os outros homens à mesa, todos na casa dos 30, supostamente maduros e profissionais a julgar pelas camisas sociais bem passadas e crachás com cargos de alta gerência estampados, não me defenderam. Além de não se oporem, deram aquela risada camarada de aprovação, o famoso tapinha nas costas. Outros, entretanto, me olhavam com curiosidade, analíticos, como se quisessem comprovar a premissa do meu primeiro machista: “Hmm, será que é ruiva mesmo? Será que a cortina combina com o carpete?”.

Meu primeiro machista, diante daqueles risos estrondosos aliados àquele silêncio que gritava: “Não é da minha conta”, estufou o peito. Dominante, coroado como o rei de uma matilha, fitava minha face petrificada. Eu tinha acabado de olhar nos olhos uma Medusa com múltiplos pênis fazendo as vezes de cobras. O som dos talheres batendo nos pratos se revelava cada vez mais audível e insistente, como se tentasse me trazer de volta àquele cativeiro hostil para ser apresentada a uma realidade amarga: o machismo também tem carteira assinada.

Meu segundo machista me levou numa hamburgueria com a equipe para comemorar o aniversário dele. Nesse dia, quando estávamos na metade de um X-Salada delicioso, com a boca lambuzada de maionese e os dedos, de ketchup, ele disse: “Dá pra saber como uma mulher é na cama pela forma como ela come hambúrguer”, e ficou encarando as mulheres da mesa. Minhas colegas deram um sorriso amarelo e começaram a comer o lanche usando garfo e faca. Eu disfarcei, dei um gole no meu suco, mais amarelo ainda, tentando fazer descer o ódio estacionado na minha garganta, em vão. Ódio é cimento, endurece, impermeia, impede a passagem de qualquer alívio. Ódio é o que sobra da apatia que mora na impotência. Ódio da não reação. Ódio da resposta que só te visita na hora do banho. Ódio que pesa nos olhos e escorre pelo ralo com a água do chuveiro. Ódio da permissão concedida com ódio. Ódio da culpa de permitir.

O lanche ficou lá no prato, esfriando, coberto por um guardanapo pra Deus não ver. Voltei pro trabalho arrastando o rancor pelo asfalto quente da Avenida Santo Amaro. Eu estava com fome, mas meu segundo machista estava muito bem alimentado pelo constrangimento que nutre a autoestima inabalável de um homem saudável de bochechas rosadas. Tinha outros caras na mesa? Tinha. Esses também não passaram fome. Continuaram comendo, rindo de boca cheia dos nossos olhares vazios.

As salas do meu novo trabalho eram como aquários, com paredes de vidro. Meu terceiro machista, um espécime raro de tubarão de água doce, achou que seria uma boa ideia se as piranhas do setor ao lado ficassem nuas, para que ele pudesse contemplá-las de seu trono reclinável de pedra, fazendo uma clara analogia à sua viagem a Amsterdã, quando pôde admirar putas na vitrine. Recebeu uma reluzente medalha de galhofas e uma salva de barbatanas pelo trocadilho; já as piranhas, essas receberam apenas os olhares famintos, curiosos e imaginativos dos predadores.

Meus machistas e seus discípulos têm algo em comum: são declaradamente progressistas. Votaram no Haddad! As músicas de protesto que chiam pelos seus fones de ouvido baratos quase sempre entoam versos que apoiam a luta feminista. Seus filmes favoritos da Marvel exaltam super-heroínas. Seus ídolos da literatura consagraram personagens feministas. O que será que deu errado? Por que nos reduzem a carne fresca? Por que se calam ou consentem diante da exposição de uma mulher? Porque eles estão cagando, irmã. A liberdade de exibir nossos corpos, a autonomia de puxar nosso Platinum da carteira pra pagar nossa parte da conta e a nossa segurança sexual nunca foram problemas pra eles. Pelo contrário, isso serve a eles. Isso não derruba o muro que eles construíram, tijolo a tijolo, para nos aprisionar num pasto, enquanto eles, os fazendeiros de camisa flanela e barba comprida, avaliam e classificam as vacas de corte.

Homens que quase sempre estão “abertos ao aprendizado”, “admirados da sua luta diária”, “em processo de desconstrução”, até você ligar um retroprojetor e exibir numa apresentação de Power Point os slides em que eles aparecem, radiantes e protagonistas, representando o papel de machistas. É pesado, né? Mas não espere dividir esse peso com quem fabrica a bigorna. É nós por nós, e sempre vai ser.

Quando uma mulher se levanta alguma coisa cai, quase sempre é uma máscara.

Vanessa A
Enviado por Vanessa A em 07/05/2020
Reeditado em 08/05/2020
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