Hontem Com H

     “Hoje já não é mais hoje. Ou melhor, hoje já não é o hoje do hoje que comecei a escrever. Não! Hoje é 12 do hoje e hontem, com H, para não fugir à linha, recebi a sua segunda carta...”
Ela lia num misto de alegria e raiva a carta ansiada por mais de um mês. Como pode demorar tanto para escrever-lhe, para responder? À época ainda não havia a facilidade do celular com seus aplicativos de mensagens, e as chamadas interurbanas eram caras. Eram tempos da troca de cartas. Então reparou no esmero da produção da missiva recebida. Era em papel trabalhado para parecer envelhecido, como um lindo pergaminho. Havia demorado por isso, queria impressioná-la. Criou um verdadeiro tesouro com códigos secretos e setas, tal um mapa de pirata.
     Leu e releu a preciosidade inúmeras vezes com o coração pleno de lembranças e saudades do romance nascido num balneário onde se conheceram, e onde tudo começou, numa das festas promovidas no lugar. Tímido, demorou a aproximar-se e precisou de uma bebida para tomar coragem. Embora fosse carnaval, as festas tinham momentos de pausa na folia e a banda ao vivo tocava outros gêneros musicais. Foi quando uma canção romântica o ajudou. E eles dançaram juntinho, com os corações a bater em ritmo acelerado quando seus corpos se aproximavam mais. Foi amor à primeira dança, vivido por todo o período das férias.
     O mês passou rápido, tinham que retornar para suas cidades e juraram escrever-se toda semana. Ela cumpriu a sua parte, ele ficou devendo, por isso a raiva inicial. É que, muito jovens, ainda não sabiam dessas coisas da distância e suas consequências para um jovem amor. A troca de cartas foi rareando até cessar de vez.
     Após algum tempo quis o destino que ela fosse morar na mesma cidade que ele, pois seu pai havia sido transferido. Era óbvio o reencontro e, embora estivesse namorando outra, o amor foi retomado. Ele acabou o namoro atual e voltaram a viver os momentos de encantamento de quando se conheceram. Mas continuavam muito jovens e ainda sem saber dos mistérios da paixão, que não respeita escolhas nem faz parte da razão. O coração dele agora pertencia àquela outra e para a outra voltou. Ela tomou o seu primeiro porre pelo sofrimento do fim do romance, mas a juventude logo cuidou de sarar a dor.
     E hoje, hoje já não é mais hoje. Ou melhor, hoje já não é o hontem do hoje quando essa história começou.
Marise Castro
Enviado por Marise Castro em 08/05/2020
Reeditado em 21/07/2020
Código do texto: T6941507
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.