Diário de Bordo (Sagrada ira Tupinambá)

Diário de Bordo (Sagrada ira Tupinambá)

Relato ouvido em primeira mão dos próprios lábios da india Cheiro...

Depois que enviuvou do primeiro marido, Cheiro se amaziou com o mestiço Língua-de-boi, uma relação que ia de mal a pior, pois o mestiço não era lá muito amigo do trabalho, e o sustento da prole sobrava todo nas costas da aguerrida india tupinambá

Dia vai, dia vem, e chega um festivo domingo de futebol no bairro da Serraria. Língua-de-boi passa gumex nos cabelos, coloca o telefone celular no embornal, pega um dos filhos da Cheiro, o Curuja, e se embalança, todo lampeiro, no rumo da festança.

Cheiro, prendada dona de casa, ficou a cuidar dos afazeres domésticos e das crianças , pois sequer nesse quesito contava com a ajuda do amásio.

O tempo correu ligeiro, e lá por volta da boca da noite, o Curuja volta pra casa, depois dos alegres folguedos do ludopédio.

- Curuja, meu fio, cadê aquele fidapeste do Língua-de-boi?

O pobre Curuja relatou à sua mãe que não vira quando o guapo mestiço se escafedera..

- Eu sei não, mainha. Eu saí do campo e num vi por onde que ele se meteu.

Cheiro coçou o cucuruto, acariciou pensativamente os ralos fios do cavanhaque, e mastigou sua desconfiança entredentes.

(-Aquele fiducabrunco tá me tomando por lesa. Deixa estar maragafo...)

Terminou o trabalho de descascar os aipins que iria por no fogo, e começou a ligar para o celular sumido Língua-de-boi.

Dezenas de ligações foram dar na caixa postal do telefone do desaperecido, e Cheiro, a essa altura já com a boca espumando e os olhos soltando faíscas, deu uma ordem peremptória ao Curuja...

-Apois, meu fio. Você vorta lá no campo e me veja aonde se escafedeu aquela misera de home.

Enquanto o diligente Curumin campeava o indigitado, algumas providenciais bocas-de-Matilde se encarregaram de segredar aos ouvidos da Índia que Lingua-de-boi estava se recreiando nos braços e regaços da apimentada india Niquinha, que não se fez de rogada aos pavoneios do Don Juan mestiço.

-Aquele miseravi vai se ver cumigo, comadre Fulô! Ah se num vai...

Curuja volta para a casa materna de mãos abanando, e Cheiro emite um ultimato para o fugitivo através dos eficientissimos serviços da Rádio Boca do Povo...

-Ou esse fiducapeta me aparece aqui em dez minutos, ou eu mesma vou desatar esse nó de cachorro com a minha faca peixeira!

Os comparsas de Língua-de-boi, temerosos de ver o mancebo com perda irreparável de seu espólio, foram até a casa de Niquinha e convenceram o ardente casal a baixar o facho, colocando o sedutor no caminho de volta pra sua moradia...

(...)

Para o mal dos pangarés e azar do nosso herói, dois longos minutos já haviam estourado o prazo fatal concedido generosamente por Cheiro, que agora esperava o desassuntado Língua-de-boi no meio da estrada, armada com sua temível faca peixeira.

Quando o infeliz mestiço, ainda enevoado com os vapores do perfume de Niquinha, se destampou com a figura da mulher estacada a sua frente, tentou correr para os matos na lateral da estrada, com Cheiro fungando ódio no seu encalço.

Não precisou mais do que dois negaceios pra lá, e três cercadas de frango pra cá, e Cheiro já havia bacunhado o pobre-diabo, e agoravestava montada na cacunda de Língua de-boi.

O deflorador de donzelas só teve o tempo de ver a lâmina da faca peixeira brilhar fugazmente na noite de Olivença, antes de se enterrar inteira na sua saboneteira.

Um brado lancinante ecoou por todo o bairro da Serraria...

-Ai meu Jesus! Acode aqui aqui que essa mulé quer me matar.

Acorreram os companheiros do mestiço, e também os parentes de Cheiro, conseguindo a duras penas evitar que a india sanguinolenta fizesse paliteiro de pirulito do pobre corpo que Niquinha havia desfrutado não fazia muito tempo.

-Larga do homi, Cheiro!

Era Noy, irmao mais novo de Cheiro, que providencialmente havia chamado Zefino, irmão do quase-moribundo, para levar o esfaqueado embora.

(...)

Polícia na porta, Língua-de-boi já devidamente protegido no carro de Zefino, e Cheiro escanchada em sua cadeira de balanço no alpendre avisa: -retirem esse fedorento daqui, porque senão eu vou terminar o que comecei, visse!

O furduncio só se acalmou quando Zefino saiu queimando pneus, a salvar o pobre Língua-de-boi da sagrada ira de Cheiro.

João Bosco.

Aprendiz de Poeta
Enviado por Aprendiz de Poeta em 09/05/2020
Código do texto: T6942229
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