"Robão de caneta"

“Minha caneta sumiu! Estava aqui agorinha mesmo...”.Quando a confusão não vinha no início da aula, certamente coroava o fechamento. O sumiço de canetas era uma tortura. Essa queixa na turma 1607 era frequente. Canetas desapareciam misteriosamente quase todos os dias. Costumava levar umas de reserva para emprestar, numa tentativa de evitar o desastroso “Alguém me empresta uma caneta?” – o que pode tumultuar o andamento de uma aula por vários minutos. Porém, naquele dia, foi diferente. Nem uma Parker substituiria o tesouro pilhado de Maycon. Era lembrança que a tia trouxe de Barcelona, era do time internacional mais adorado pelos meninos, tinha o escudo do Barça bem na tampa, nunca fora usada, era a primeira vez que ele a trazia para a escola, não era para escrever, era para admirar, exibir, adorar, resumindo: a caneta tinha de aparecer de qualquer maneira!!!

A confusão estava armada com 37 suspeitos. Depois de perguntar inúmeras vezes se ele realmente havia trazido o objeto, depois de pedir que todos procurassem à sua volta, olhassem no chão, nos estojos e nos bolsos, ameacei revistar as mochilas de cada um. Foi aí que Robson acusou Ronald. Disse que o viu pegar a caneta. Ronald, por sua vez, diz que só eu não sei que Robson é o maior “robão” de canetas da turma. Decido definitivamente vistoriar as mochilas de ambos: na de Ronald, a joia barceloneta; na de Robson, treze canetas diferentes. Disponho todas sobre a minha mesa e imediatamente um outro aluno reconhece uma delas no meio da coleção. “Eiiii, essa caneta aí é minha! Perdi ontem!”. Sem condição de continuar a aula, decido gastar o tempo que me resta dando aquele sermão nos dois sobre levar algo para casa que não lhes pertence.

Robson se justifica dizendo que cada uma daquelas canetas ele achou no chão da classe e achado não é roubado, quem perdeu é relaxado. Indignada com o cinismo do moleque, insisto em repreendê-lo afirmando que, quando ele pega algo em sala e não procura o respectivo dono, estará rou-ban-do, pois certamente aquilo pertence a um dos colegas. Revoltado com a situação vexatória em que se colocou, ele me acusa de chamá-lo de ladrão. A classe não perdoa e logo alguém grita: “Robson, robão de caneta!”. O menino sai hostilizado, mas com todas as canetas nas mãos e uma promessa: “Isso não vai ficar assim! Vou falar com a minha mãe!”.

No dia seguinte, antes do início das aulas, vejo uma mulher bastante jovem, de shortinho bem curto, top, piercing no umbigo e chinelos, anunciando aos berros pelos corredores que precisa saber quem é a mulherzinha que chamou o filho dela de ladrão. Desvio meu caminho e procuro refúgio na sala da coordenação. Lá, com a mediação da diretora da escola, escapo de uma iminente agressão física, mas não da saraivada de desaforos que aquela mãe disparava sem parar contra mim. Nada a convencia da má conduta do filho nem da minha tentativa, ainda que desastrosa, de orientá-lo a agir corretamente nessas situações. Ela estava bem brava, não queria dialogar, tampouco ouvir os outros colegas de classe que tiveram suas canetas subtraídas. Repetia furiosamente que eu havia ofendido o filho dela e que isso não iria ficar assim. Na versão dela, todas as canetas pertenciam ao filhinho. “Só porque sou pobre não posso ter comprado todas essas canetas para o meu filho? Posso, sim!” – esbravejava clamando justiça.

Meu olhar fixo no guri também clamava por alguma reação honesta, mas ele fazia aquela cara de "não falei que minha mãe viria" e permanecia em silêncio.

Para proteger não só meus dentes, como o equilíbrio emocional necessário para continuar o dia de trabalho que já começava tenso, resolvi, por livre e espontânea pressão, pedir desculpas a ambos pelo mal-entendido, reconhecendo minha reprimenda exagerada e prometendo que episódio semelhante jamais voltaria a acontecer. Apenas solicitei que o garoto evitasse ostentar a sua “coleção” de canetas na classe a fim de não humilhar os amigos que normalmente só possuem uma ou duas.

Andréa Carvalho
Enviado por Andréa Carvalho em 09/05/2020
Reeditado em 09/05/2020
Código do texto: T6942354
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