A CASA DE ANDRÉ

Certo dia, meu amigo, André, convidou-me para conhecer sua casa. Eu, então, de muito bom grado, aceitei o convite com muita felicidade. Naquela altura, pouco imaginava a quão inusitada poderia ser visitar uma casa de alguém que era cego de nascença.

Nossa amizade era de tempos atrás, tínhamos intimidade suficiente para que meu querido amigo me convidasse para visitá-lo. Embora muito bem sucedido em sua carreira artística, não possua esposa, filhos ou parentes próximos. Vivia, então, só.

Não me atreveria a concluir que sou o que mais se aproxima de um familiar, mas, com segurança, posso afirmar que o considero parte importante da minha.

Lembro-me como se fosse ontem do dia em que conseguiu alcançar seu sonho de projetar a casa que sempre sonhara, como tudo aquilo que importava para ele: uma casa na medida de suas necessidades e prioridades.

Sem maiores detalhes, sempre soube que aquela casa seria um retrato dele e por muitos momentos me peguei especulando sozinho como seria a casa; quais os valores que a fazia ser tão especial para ele.

Não me atreveria a perguntar-lhe sobre detalhes da casa, afinal, meu amigo André sempre foi uma pessoa muito reservada. Mostrava-se relutante até mesmo para contar histórias de sua vida recente, já aclamada pelo mundo de modo geral.

* * *

Amanheceu o grande dia, finalmente. Os raios ainda sem a totalidade de suas forças reluziam e encandeciam o céu de uma luz alaranjada, intensa. Pouco a pouco o sol crescia sob o manto gelado que a madrugada deixara. Eu, postado frente a tal grandiosidade apreciava aquele espetáculo, como poucas vezes fiz.

Naquela manhã, especialmente, estava com meu pijama azul petróleo. Fui até a cozinha, preparei um café expresso e voltei para a janela de meu quarto para apreciar mais um pouco da sintonia de cores que aquecia meu quarto paulatinamente. O dia nascia especialmente belo àqueles que se dispunham a despertar a tempo para apreciá-lo.

Levantei meu café e o vi sob o brilho cada vez mais forte do sol, via nele seus traços avermelhados mareando dentro da xicara de vidro, enquanto exalava todo o perfume forte e amadeirado que prometia despertar a mente de quem o sorvesse, ao invés de simplesmente apreciá-lo. Aceitei o destino, enquanto quente, o fiz deslizar para dentro de meu organismo.

A essa hora, a grande estrela já havia se erguido o bastante para afugentar a fina camada da noite que sobrara e impunha-se no céu, por inteiro, apresentando-se ao mundo, como a verdadeira força, quente e implacável.

Já não podia olhar para ela, então, apenas fechei os olhos e senti minha pele sendo aquecida. Minha mente vagueava naquele momento até ser despertada pela lembrança de que precisava me preparar.

Virei-me rapidamente, fui até o guarda roupas e o encarei: como me vestir para esta data tão especial. Azul? Não, prefiro aquela peça vermelha, sim, fico tão bem nela, pensei. Vesti-me, quase por inteiro, até que, então, um toque na campainha me fez levantar e buscar entender quem me interromperia nesse momento. Quem ousaria incomodar alguém às 6:00?

Um rapaz, rusticamente vestido com trajes de couro, ainda com o capacete, questionou se falava comigo. Confirmei. Então, entregou-me dois envelopes e orientou-me que deveria ler o menos, antes de pensar em abrir o maior.

Agradeci e, então, antes mesmo de fechar a porta, abri o primeiro envelope:

“Meu caro amigo.

Quero que esse dia seja especial, proporcionando a você um momento para nunca esquecer.

Enviarei um carro para te buscar as 16:00. Peço que não abra o segundo envelope até que seja orientado a fazê-lo.

Assim que o abrir, peço que faça exatamente o que está escrito nele.

Não terei condições de conferir se o cumprirá, mas confio que o fará.

Até,

André”

Enquanto lia, escutei os passos do rapaz se afastando; montando em sua moto; ligando-a e, então, afastando-se até que não era possível mais escutar a moto. Eu, continuava olhando, fixamente o bilhete aberto e o outro fechado.

Uma brisa dura e fria passou, cortando minhas bochechas, jogando-me para fora do meu devaneio de curiosidade descontrolada.

Larguei os envelopes na primeira superfície segura que encontrei e voltei ao meu quarto para as solas descalças dos meus pés que, de tão geladas, praticamente já não eram sentidas por mim.

Arrumei-me da melhor forma que pude. Não queria que outros vissem alguém mal vestido indo a casa de André. Isso poderia ser ruim para a imagem dele. Ou será que seria para a minha mesmo? É engraçado, mas as vezes o egoísmo pode estar guardado em sentimentos tão nobres, que praticamente passam despercebidos, inclusive por mim mesmo.

Aprontei-me, sentei-me e esperei, em frente a porta, o momento que alguém chegaria para me buscar.

8:00: minutos passaram. 10:00: Será que eu estava adiantado? Não. 11:00: Ele esqueceu? 11:15: Será que aconteceu algo? 11:55: Peguei o celular e, já pronto para ligar, olhei as horas: 12:00: Ainda não era hora. Muito cedo, ele disse que seria algo no anoitecer.

Sim, nossa, como eu pude esquecer. Não deveria estar pronto tão cedo. 12:30: O dia passou, enquanto caminhava entre um cômodo e outro, tentando conter meu impulso em ligar e sugerir antecipar nossa reunião.

13:00: Sentei-me no sofá, troquei os canais, sem perceber o que as vozes diziam. Queria apernas ocupar minha mente com o efeito de apertar botões e ver o resultado deles na tela em minha frente.

15:30: Poucas horas depois, já estava cansado. Já tinha vivido o que queria. Talvez não seja tão legal ir ao encontro de meu amigo, poderia tomar um banho e dormir. Decidi comer algo, enquanto decidia se iria realmente ou se cancelaria nosso evento.

Não queria preparar nada, era possível que sujasse minha roupa preferida. Abri o armário e procurei o que poderia comer sem sujar nada. Encontrei umas bolachas. Na geladeira, um pedaço de queijo branco parecia o acompanhamento ideal para a situação.

Por um momento, minha mente foi tomara pelo sabor industrializado que invadia minha boca. A textura macia do queijo branco ia se contrastando com a maciça estrutura das bolachas, que custavam a mastigar. Quando percebi, jazia em minha frente um pacote vazio e um prato com o suco do queijo que ali residia.

Bom, era hora de decidir. 15:50. Peguei o telefone, busquei o número na agenda e, instintivamente, disquei o número de André. “Já decidi, então?” Perguntei-me. Liguei. 15:55: O primeiro toque, foi acompanhado com um frio na minha espinha vertical. O segundo, de um vazio no peito. O terceiro, trouxe a tristeza de um amigo que desistiu de esperar. O quarto, então, foi interrompido por uma buzina na porta de casa.

“Alô”. Telefone desligado. “Que idiota”, pensei sobre mim. Busquei minhas chaves, abri a porta. Do lado de fora de casa, o mesmo rapaz, agora revigorado e uniformizado, num carro todo preto, esperava-me. Sai pela porta. Quando estava para fechá-la esbarrei o olhar e encontrei jogados ali os envelopes.

Imediatamente, entrei sob a porta entreaberta, utilizando meu ombro como escora para abri-la; peguei os envelopes e, então sai em direção ao veículo que me esperava. No carro, sentia o pulsar da pancada ainda não resolvida, que me lembrava do quanto eu era esquecido.

Então, resolvi. Aqui estou.

“olá, tudo bem?” disse o rapaz. Disse que sim, retribuindo a gentileza da preocupação, ainda que automaticamente acionada em virtude de mera etiqueta. “Você se lembrou do envelope fechado?”, levantei o envelope e sorri. Nesse momento, meu braço novamente pulsou, lembrando-me de toda minha estupidez.

Assim, partimos dobrando as ruas da minha habitual vizinhança. Cruzamos a avenida que normalmente utilizava para ir ao trabalho. Olhei para a casa abandonada, como era de costume, para ver se havia novos invasores. Não era raro que a avenida fosse tivesse uma das fachas ocupadas por viaturas que eram largadas ali para negociar a saída de invasores da casa dos antigos Merielos.

Seguimos, passando pelo mercado em que costumava comprar comida para minha casa. Aproveitei, então, para acompanhar as promoções estampadas nas grades do lado de fora, mas não tinha nada que tivesse me chamado atenção, exceto o fato de que haviam reduzido o preço da cafeteira que havia acabado de comprar. Se eu tivesse esperado mais uma semana, poderia ter economizado: merda.

Mantivemos nossa rota. Como um passe de mágica, viramos à direita e estávamos imergidos em um mar de árvores que brotavam dos dois lados da rua para saldar os visitantes. Paramos em uma guarita.

“Nós vamos na casa 5, do bloco 35. Residência do Sr. André”, o rapaz da guarita balbuciou alguma coisa, então o motorista retrucou, “Sim, quantas vezes preciso falar, esse carro está registrado. Não sabe ler?”. Alguns segundos depois a cancela se levantou e passamos.

“Esse pessoal, viu. Não sei onde mantém a cabeça! São uns incompetentes”, o motorista, então colocou a mão direita sobre a cabeça, como se estivesse desesperado com o erro do rapaz, e só a abaixou para trocar a marcha, olhou pelo retrovisor e continuou “você pode abrir o envelope”.

Finalmente.

“Olá, meu amigo, que bom que esperou. Aqui tem uma venda, peço que a coloque. O Mauricio o ajudará a encontrar minha casa. Peço que não a tire até que eu expressamente peça. Obrigado”.

Coloquei a venda. Senti o carro dobrando mais algumas ruas até que, então, parou.

* * *

Um leve toque no meu braço direito anunciava o momento de saltar do carro. Mas, para onde ir após sair a porta.? Qual era a altura da guia?

“Calma, eu te ajudo”, ouvi a voz do rapaz que dirigira às pressas até lá. A venda forçava contra meu rosto, de modo que nenhuma luz entrava por meio de possíveis fendas, tornando impossível enxergar qualquer coisa.

A passos atrapalhados, guiados por um braço gentil, sentia-me inseguro por não ter qualquer controle sobre meu destino: para onde estava me levando. Por um momento, entre um passo atrapalhado e outro, senti um cheiro, doce, suave. Um perfume? Uma flor?

Ao final, ouvi uma porta destrancar, fui colocado para dentro. A porta se fechou.

“Olá, meu amigo, que grande prazer o receber você aqui”, dizia a voz de André, de algum lugar abaixo de mim, como se estivesse sentado “Por favor, tire a máscara”.

Inebriado por um alívio sem igual, com ânsia de enxergar novamente, retirei a venda. Para minha surpresa, ainda não enxergava nada: a sala de espera não tinha qualquer janela, embora fosse possível sentir uma leve brisa passar por entre minhas canelas.

“Podemos acender a luz?”, disse eu, ansioso para enxergar toda a beleza arquitetônica que teria sido empregada naquela casa.

“Não temos luz aqui, nem janelas”, retrucou André, com um tom receptivo, como se dissesse aquilo com um largo sorriso no rosto. Então, complementou: “de que me serviria luzes e janelas, se não poderia apreciar nada. Não que não tenha luz em lugar nenhum, tenho, afinal pessoas precisam limpar este lugar e o ar precisa circular, mas, hoje, não acenderemos nenhuma”.

Senti um toque em meu ombro direito. “Hoje, vou apresentar a você um mundo como eu o sinto. Hoje quero que sinta minha casa e tudo o que preparei”.

“Primeiro, quero que sinta o que temos aqui”.

Minhas mãos começaram a suar frio, queria poder sair dali, contudo isso desapontaria meu amigo e, além disso, já não sabia em qual direção ficava a porta pela qual entrei. Decidi, então, entregar-me a experiência proposta.

Respirei fundo e, então, menta. Menta? Um cheiro de menta subia do chão, como se canalizado por dutos, provavelmente o mesmo que refrescava as minhas canelas, agora percebia que também refrescavam minhas narinas. Sentia a menta invadindo minhas cavidades nasais, até chegarem no topo da língua, onde conseguia sentir um pouco do gosto da menta.

Minha garganta resfriava, meu estômago. Então, um sentimento leve e despreocupado tomou conta de mim. “Menta”, disse.

“Isso mesmo!”, bradou meu amigo, “agora, vamos para a próxima sala”. Enquanto caminhávamos sem rumo visível, falamos sobre meu dia e como eu quase esqueci os envelopes em casa.

Chegamos, então, na segunda sala. Pouco a pouco a refrescante brisa de menta foi sumindo, sendo substituída por um calor que irradiava do ar, acompanhado de um cheiro de canela.

“Calor, meu amigo?”, disse André.

“Sim, muito. Você tem aquecedor aqui?”, repliquei.

Após uma risada estendida, meu amigo explicou “não, apenas acendi um incenso de canela aqui no corredor. Agora, gostaria que você colocasse novamente a venda, quero que você aprecie o que virá, mas sem os olhos”.

Enquanto André falava, buscando reconectar com algo, enquanto imergido no breu, coloquei a mão na parede. Notei diversos pontos ordenados e setas, como se marcações que indicavam onde ir. A nossa direita, uma pequena fresta de luz passava por baixo de algo que imaginava que seria uma porta para algum lugar aberto. Coloquei a venda. A porta se abriu e saímos.

Novamente, vi-me inebriado por aquele doce cheiro. “Que cheiro é este?”, perguntei.

“Lavanda. Tenho um jardim com lavandas aqui”. Ele me guiou para algo que acredito que seja um banco. Sentamo-nos e, por alguns momentos, ficamos em silêncio apenas sentindo a lavanda.

Era inusitada a situação, pois, naquele local, eu era a pessoa cega que era guiada. Ele conseguia enxergar os locais, não com os olhos, mas com os aromas e marcações em braile na parede. Senti algo voando perto de mim, pousou no banco perto do meu ombro esquerdo. Subiu em mim e, então, voou novamente.

Passei, então a escutá-los: diversos passarinhos voavam, por vezes tão perto que era possível sentir o leve farfalhar de asas. Faziam uma verdadeira festa naquele recanto de segurança e paz.

“Bom, vamos entrar, você deve estar faminto”, disse André. Levantei-me sob seu cuidado e vagueei no vácuo sob a direção apontada por meu amigo.

Entramos numa nova sala, esta última com um cheiro adocicado, laranja. De repente senti outros cheiros conhecidos: peixe, arroz. “Tire a venda, meu amigo”.

Agora com luz, via uma imensa sala de jantar, onde já estava servida nossa refeição. Senta-nos e jantamos. Conversamos por horas.

Ao final, despedimo-nos e, embora encantado com a experiência, questionei o porquê da venda.

“As pessoas são muito ligadas às primeiras aparências e acabam deixando de viver o que há de melhor”, respondeu meu amigo.

Caminhei até o carro que me aguardava, atrás de mim a porta se fechou. Viro-me para olhar e, então, deparo-me com uma casa que mais parecia um cubo de concreto, sem qualquer acabamento externo.

“Que casa incrível”, falei baixinho para mim mesmo.

Satisfeito, fui embora.

Marcelo Marques Júnior
Enviado por Marcelo Marques Júnior em 17/05/2020
Reeditado em 17/05/2020
Código do texto: T6950452
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.