Pode tocar que é nossa

É domingo, dia 26 de abril de 2020. Há mais de um mês estamos em quarentena. Há poucas pessoas circulando nas ruas, o comércio não-essencial – creio, porque não tenho saído – está fechado e o futebol nacional – e quase todas os campeonatos do mundo – está parado. Parada, não está a política. Se não há divisão entre flamenguistas, tricolores, vascaínos e botafoguenses, os adversários – estão mais para inimigos - se polarizam, de uma forma atual e simplista, entre os negacionistas e os quarenteners. A extrema direita, eterna adepta da ignorância e do obscurantismo – aqui, poderia xingá-los de mil formas, uma vez que sei que não são afeitos à leitura – politizou o vírus. O país, que está dividido radicalmente desde 2013, sequer conseguiu se unir na batalha contra uma doença.

Falando de 2013, as Jornadas de Junho fortaleceram um projeto de poder elitista de um consórcio composto por setores da mídia, do Judiciário e das Forças Armadas; pela direita liberal e extrema direita; e pelo setor financeiro e Departamento de Estado estadunidense. No esforço de combater um partido e suas políticas igualitárias (ainda que pontuais e insuficientes), criminalizaram a própria política e forneceram as bases para um golpe institucional-parlamentar. Após dar um golpe na soberania popular e desqualificar a principal forma de mediação de conflitos sociais, em pouco tempo, assistimos horrorizados o ataque aos direitos dos trabalhadores conquistados através de lutas que datam o início do século XX . Mais recentemente, o consórcio foi cúmplice na fraude das eleições presidenciais.

No campo econômico, tem implantado uma política de entrega das riquezas nacionais ao capital privado e estrangeiro e de financeirização da economia. Resulta disso que, no atual momento, durante a quarentena (de poucos), assistimos a um modelo de Estado que não garante o isolamento social dos mais pobres, mas que socorre aos bancos, na medida em que tenta implantar uma agenda de estado mínimo (para quem?) na lei ou na marra. Na marra, os militares ocupam cada vez mais a República Democrática construída por civis (ainda que tutelados e por cima), o Presidente da República encerra os conselhos populares, ignora-se a Constituição e promove-se uma fratricida disputa entre as instituições republicanas que, ainda que burguesas, se não passássemos por um momento de exceção desde 2013, talvez capazes de frear o ímpeto autoritário.

Após o desabafo, nesse momento em que vivemos o mundo de ponta-cabeça como definiria um historiador inglês, durante uma semana, anunciou-se na TV a reprise da final da Copa do Mundo de 1994. Minha primeira reação é de uma grande empolgação, afinal, foi uma das primeiras seleções que eu me lembro de ter visto jogar. Seria também um bom pão e circo nesse momento de opressão. Mas, o mais importante é que valeria a pena, agora, como historiador formado e boleiro aposentado, estudar como se jogava futebol na época, as palavras e gírias que Galvão Bueno usava nas narrações e a estética da transmissão dos jogos. Além disso, na dimensão mais pessoal, seria possível aferir se fiz uma boa escolha quando, durante toda a infância, escolhi o Baixinho para ser minha referência futebolística nas peladas de rua e escolinhas de futebol.

Lembrando daquela competição, apesar de ter empatado no último jogo de sua chave, o Brasil classificou-se em primeiro lugar. Nas oitavas, quartas e semifinais, fora vitorioso. Não a ponto, é verdade, de se dizer que a adversária do último jogo, a Itália, estava no bolso. Entretanto, independente do resultado final, já era uma excelente campanha, haja vista que o Brasil chegou na competição desacreditado e profundamente abalado. A campanha nas eliminatórias não empolgou e, cerca de um mês antes, o país perdera um de seus ícones, o piloto Ayrton Senna, em um trágico acidente.

Como prova da não empolgação, na política, mais de um ano antes, o país havia definido a república como regime e o presidencialismo como forma de governo. O povo escolheu que, no Brasil, havia passado o tempo dos reis, mantendo-se somente os títulos de craque, presidente e capitão. Mas, se na frente da seleção havia um Dunga, no mesmo ano da Copa, a famosa CPI dos Anões do Orçamento pedia a cassação dos outros 18, que não respeitavam a torcida por um desempenho melhor de nosso regime.

Na economia do período, após diversas alternações entre planos econômicos e políticas de “feijão com arroz”, é lançada uma nova tática: um Plano que se tornou um dos marcos de nossa República. O chamado Plano Real previa o fim da hiperinflação com um rígido controle inflacionário, além da estabilização econômica. Boa parte dessa meta, seria alcançada com o desmantelamento da res pública, através da contenção de gastos públicos, privatizações, redução do consumo, alta taxa de juros e abertura da economia. A ideia era, como em outros momentos, fazer o bolo crescer para, somente depois, dividi-lo. Não se dizia entre quem.

Mas o fato é que em 1º de julho daquele ano o Real passava a circular. Dezesseis dias depois, o Brasil jogava a final que assisti, agora, durante a quarentena. Nessa retransmissão, pude perceber as principais características daquela seleção armada pelo treinador Carlos Alberto Parreira: valorização da posse de bola com toques curtos, de modo a dominar o jogo; variação tática, quando pressionava no campo adversário (4-1-3-2) e quando defendia em seu próprio campo (4-3-1-2); rápida recomposição e forte marcação quando perdia a pelota; ao atacar, um Bebeto que saía da área e abria espaço para que os laterais entrassem em diagonal e cruzassem a bola para um Romário, rei da grande área; no meio, um Dunga como grande articulador. Percebe-se que em 1994, entrou em circulação um plano perfeito. O Brasil, nos pênaltis, foi o campeão.

A reprise da final de 1994 não me impressionou pelo futebol que se jogava na época, nem pelas palavras que Galvão Bueno usava nas narrações e tampouco pela estética da transmissão dos jogos. Comecei essa digressão por culpa de uma cena em particular que eu não me lembrava que havia acontecido. Após o pênalti perdido por Roberto Baggio, todos lembramos que o apito final foi mesmo o famoso grito do Galvão Bueno: “É tetra!!! É tetra!!! É tetra!!!”. É fácil também recordarmos que Galvão, enquanto gritava, era sufocado por Pelé, que um componente da comissão técnica deu uma cambalhota na beira do campo, que o elenco e o staff se abraçaram e dançaram para a torcida.

O que me impactou foi mesmo uma cena bem no encerramento da transmissão. Creio que, inclusive, na época, poucos observaram esse momento que descreverei, porque, possivelmente, sentiam que, a partir daquele momento, não só o país, mas o mundo era nosso, e, por isso, ocupavam as ruas com as comemorações. Acontece que, agora, em quarentena, a gente tem outra perspectiva sobre as coisas. Conforme a lição dos historiadores, isso acontece porque o tempo presente influencia o nosso olhar para o passado.

Nesse domingo, revendo a transmissão de 1994, notei que as medalhas e o troféu de campeão foram entregues no meio da torcida. Parreira, terminada a premiação, desceu eufórico as arquibancadas com a taça nas mãos. O povo, em cada degrau que ele descia, queria encosta-la. Vendo a ameaça do descontrole e o cerco dos seguranças, por um momento, pensei que o comandante da seleção teria o reflexo de carrega-la acoplada consigo, afastando-a dos torcedores. O protocolo, garantindo a ordem e o privilégio de poucos, se queria dar um ar de importância àquela taça, pelo contrário, não permitia ver a dimensão que alcançara. Era como se fosse apenas um objeto valioso de contemplação, por isso, passível de ser roubado e controlado por indignos, que poderiam querer toma-la para si, passando de mão em mão, perdendo-se, com isso, a tutela. Parreira, gesto que só agora pude perceber a dimensão, ignorou a vigilância que continha o povo. Para a minha surpresa, de forma generosa e solidária, permitiu que aqueles que estavam mobilizados para vê-la, tocassem-na:

- Pode tocar que é nossa!

Vinte e seis anos depois, fico pensando o que aconteceu com a nossa República. No caso da taça, foi necessário que o povo a encostasse para sacraliza-la.