Uma Viagem no Tempo

15 de fevereiro de 2021. Dia 439 da pandemia mundial.

Hoje escrevo mais um capítulo em meu diário. Se você está lendo essas páginas, eu provavelmente estou morta. Mas a morte é uma visitante ingrata que a maioria das pessoas aqui já recebeu em sua porta. Quando esse vírus surgiu no final de 2019 alguns países não deram a devida importância... Infelizmente vivo em um desses países. Talvez eu tivesse melhor sorte se tivesse nascido na Alemanha ou no Reino Unido. O que restou desses países ainda é muito melhor do que restou ao meu redor. Lá, ao menos, as notícias são de que as pessoas recomeçaram suas vidas. Claro que todos tivemos que reaprender a viver... Quando o total de mortos passou de 350 mil a curva ganhou proporções exponenciais para as quais ninguém estava preparado. O caos foi total. A instabilidade política, a situação precária das pessoas. A guerra... Hoje estamos vivendo um dia após o outro. Sem grandes perspectivas. Muitas pessoas perderam tudo na guerra. Os fuzis e os canhões dos tanques nas ruas só não fizeram mais vítimas que o próprio vírus.

Eu vivo com um grupo de refugiados no que antes era um condomínio luxuoso da minha cidade. Hoje são destroços, mas o Thomas e os outros rapazes que tomam conta daqui conseguem nos manter seguros. Viver nesses tempos não é fácil! Uma mulher da minha idade, 36 anos, estava acostumada a viver uma vida ativa.

Mas depois de tanto tempo sem as coisas que tínhamos, já nem nos lembramos mais como era tê-las. Quem iria imaginar que viveríamos sem internet... Sem informação.

Nos acostumamos com os sons da guerra lá fora... Já faz 128 dias que não saímos para nada. A morte está à espreita além dos portões. Se você não morre interrogado pela milícia, pode morrer pelo contato com um dos infectados que vagam nas ruas em busca de abrigo e comida. Invadem o que encontram pela frente. Arrebentam portas, janelas... Eu devo dizer que tenho até sorte de estar onde estou. Aprendemos a viver em comunidade aqui. As pessoas têm suas funções. Cultivamos nosso próprio alimento. Cuidamos uns dos outros. E a única regra que conhecemos é: Ninguém entra. Ninguém sai. Hoje já encerrei minhas tarefas e espero ter uma noite tranquila de sono. É uma falsa esperança pois as noites nunca são tranquilas. Mesmo assim há sempre a possibilidade de sonhar.

16 de fevereiro. Dia 440 da pandemia

Acordei assustada com uma explosão ensurdecedora. Nunca ouvi nada parecido. Nem quando a vila vizinha foi bombardeada. Minha cabeça dói. Tento me levantar mas sinto como se perdesse o equilíbrio. Há fumaça por todo o acampamento, mas não vejo fogo. É uma fumaça estranha. Sem cheiro. Densa. Como uma neblina. Aos poucos essa névoa vai se dissipando e eu vou recobrando os sentidos. Ainda está escuro mas vejo um clarão lá fora. Estou sozinha, o que é estranho. Geralmente dormem mais 12 mulheres na minha ala. Visto uma blusa, pois o clima está muito frio. Sinto algo pingar no meu pé. É sangue. Meu nariz está sangrando e eu não percebi. Inclino a cabeça para trás e pego um pedaço de pano ao lado do colchão. Caminho em direção a porta. Só o silêncio dentro do refúgio e os sons de gritos lá fora. Saindo do meu dormitório percebo que o frio é maior do que pensei. O que é realmente muito incomum. Fevereiro sempre foi uma época de calor, onde curtíamos a praia, enquanto os adolescentes mais inconsequentes comemoravam o carnaval e viviam como se não houvesse um dia seguinte.

Bom... hoje vivemos sem saber se haverá um dia seguinte mas tenho certeza que não passa pela cabeça de ninguém nenhum motivo para se comemorar...

Meu nariz parou de sangrar. O silêncio dentro do refúgio contrasta com o som lá de fora. Por cima dos muros vejo um clarão que indica que algo enorme está pegando fogo. Lá fora a fumaça é mais escura e sufocante. Diferente da névoa que agora já quase não se vê. Vejo destroços no pátio do que parece ser uma aeronave. Grito por Thomas e pelos nomes das pessoas com quem convivi nesse último ano. Não posso chamá-los de amigos, pois sempre fui muito reservada e apesar de me dar bem com todos que viviam aqui, nunca contei muito sobre minha vida anterior. Tive medo de me julgarem. Com tantas coisas para lidar, a última coisa que eles precisavam era conhecer a vida de uma garota estranha, e suas histórias que ninguém acreditava. Sem falar que minha última experiência em dividir com alguém as coisas que aconteceram na minha vida quase me fizeram ser internada como louca em um sanatório. Não. Aprendi a guardar algumas histórias para mim mesma e vestir minha máscara de pessoa normal. Ninguém gosta de alguém diferente... Alguém especial faz as outras pessoas lembrarem da própria trivialidade de suas vidas. Me acostumei a isso. Mesmo assim eu daria qualquer coisa para encontrar alguém agora que me explicasse o que está acontecendo. Vejo mais alguns destroços do avião. Um dos pedaços do que parece ter vindo da asa tem uma inscrição numa língua que não reconheço... Há alguns meses atrás eu digitaria no meu celular e pelo menos descobriria a origem desse avião...

Continuo seguindo em direção à entrada do refúgio e então tenho uma visão que me faz gelar a espinha. A parte maior da frente do avião destruiu completamente a entrada do refúgio e vejo várias pessoas do outro lado removendo os escombros para tentar entrar!

Corro de volta para meu dormitório apavorada. Não sei qual é a intenção das pessoas que estão tentando entrar. No desespero tropeço em um dos destroços e sinto que cortei minha perna.

A dor é enorme e a fuselagem parece enferrujada. Rasgo um pedaço do meu vestido e improviso um torniquete para estancar o sangue.

Mordo outro pedaço do pano para tentar não gritar e assim não chamar a atenção dos estranhos que tentam entrar a força.

Sangue sempre me deixou nervosa e sinto que estou prestes a desmaiar. Fecho os olhos e tento focar. Respiro fundo. Preciso raciocinar. Quem são essas pessoas? O que elas querem? Quando começo a prestar mais atenção na peça que tropecei ela lembra uma hélice partida. Olhando para os outros destroços como se fossem um quebra-cabeças começo a tentar formar na minha mente a imagem do avião e percebo intrigada que ele não é um avião moderno. Parece ser um avião antigo da segunda guerra. Meu irmão mais novo costumava colecionar soldadinhos e veículos antigos em miniatura e esses destroços lembram muito algumas partes dos aviões da sua coleção.

Meus pensamentos são interrompidos com um grito que vem dos escombros do portão. Um soldado está gritando ordens numa língua que não reconheço e gesticulando para as pessoas entrarem . Eles conseguiram remover os últimos entulhos do que sobrou da entrada do grande muro que bloqueava o acesso deles. Uma multidão se espreme para passar pela abertura e começa a entrar. Me levanto rapidamente e retomo o rumo em direção ao meu dormitório antes que me vejam ali. Com o coração disparado e no ímpeto de fugir esqueço que minha perna está machucada mas a dor lancinante me impõe um ritmo de corrida que eu desejava que pudesse ser mais rápido. Mancando e me controlando para que a dor não selasse meu destino, consigo chegar até a entrada do dormitório. Fecho a porta e coloco a barra de madeira para evitar que entrem no barracão. Quando percebo que estão se aproximando, me lembro do esconderijo perfeito. Meu dormitório tem um acesso a uma espécie de sótão não muito visível. Fica no teto e para acessá-lo é preciso puxar uma escada embutida. Subo em um dos beliches para tentar alcançar. Infelizmente minha altura não ajuda muito e quando me estico para puxar a alça que dá acesso à escada escorrego e acabo chamando a atenção das pessoas lá fora...

Percebo que um dos guardas está batendo na porta e forçando a entrada. Mas quando olho para cima, vejo aliviada que meu esforço não foi em vão. Antes de escorregar consegui alcançar a alça e a escada estava mais baixa, agora ao meu alcance. Me levantei, subi as escadas e puxei de volta o acesso, que se fechou exatamente no mesmo instante em que os soldados conseguiram arrombar a porta do quarto. Eles gritam e fazem sinal para as pessoas entrarem no quarto. Encolhida no sótão, consigo observar pelas frestas a movimentação das famílias começando a se instalar ali e os soldados revirando os pertences que lá estavam. Quando começo a reparar nos civis tenho meu segundo choque de hoje. Os trajes das pessoas é o que me chama a atenção. Vejo homens com suspensórios e boinas. Mulheres com vestidos de punho rendados. Crianças com meia e sapato, as meninas com uma espécie de chapéu em forma de véu na cabeça... Essas pessoas parecem definitivamente pertencer a uma outra época. Os soldados parecem confusos quando encontram uma caixa cheia de celulares que já estavam a muito tempo sem uso desde o apagão do ano passado que acabou com a internet e a comunicação via satélite. Eles parecem não reconhecer aqueles objetos. Como se não fizessem parte do mundo que eles conhecem.

Nesse momento começo a lembrar das últimas notícias que o Thomas nos trouxe. Ele era o único que conseguia notícias do mundo exterior através do seu aparelho de rádio amador com o qual insistentemente tentava contato com outros sobreviventes. Todos se reuniam em volta da mesa à noite para ouvir dele as novidades. Se o foco da resistência ao sul tinha conseguido alguma vitória. Se o grupo de cientistas ao leste tinham feito algum progresso em busca de uma vacina... uma cura... uma solução... e eu me lembrei da noite em que ele reuniu todos para contar sobre algo promissor. Eu não fazia parte do grupinho deles. Como eu disse, sempre fui muito reservada. Mas enquanto cuidava de um reparo no sistema de irrigação da horta pude ouvi-lo contar aos outros. Os cientistas estavam tentando algo inovador. Algo ridicularizado por muitos, mas que podia ser a chave da salvação da humanidade. Afinal todo problema tem uma origem. E se ao invés de tentar sanar as consequências do problema, fosse possível tratá-lo na sua origem?

Com meu ferimento exposto, ardendo em febre, me forcei a me manter alerta e tentar lembrar... O que o Thomas contou naquela noite aos outros? E enquanto eu olhava pela fresta vi um dos meninos. Aquele de boina e suspensório, olhar para o teto. Na minha direção. E com uma expressão apática apontou o dedo diretamente para a fresta pela qual eu observava. Disse algo que não compreendi mas deduzi que estivesse chamando por alguém... Talvez sua mãe... Sinto que devo sair dali para não ser descoberta mas estou fraca. Nesse momento perco os sentidos.

Dia 17 de fevereiro. (Talvez)

Não sei ao certo por quanto tempo dormi.

Minha cabeça dói mas ao menos a febre parece ter ido embora. Me levanto devagar sentindo ainda muita dor. Olho para minha perna e percebo que recebi cuidados. Não que eu não tenha feito um trabalho razoável com meu torniquete improvisado, mas definitivamente a pessoa que fez o novo curativo na minha perna sabia o que estava fazendo. Percebo que não estou mais no sótão e sim na cama do beliche.

Vejo algumas pessoas aparentemente adaptadas àquele lugar. Parece que transformaram aquilo numa espécie de enfermaria improvisada e as camas se tornaram os leitos dos feridos. Eu me levanto e dou alguns passos em direção à porta. Uma moça se vira em minha direção e diz algo num tom maternal me indicando que eu devo voltar a me deitar. Ela começa a me conduzir de volta para a cama. Eu não compreendo uma palavra do que ela diz. Ela também veste um vestido antigo. Como se ela fosse de outro lugar. De outra época. Do século passado. Não sei. Quem são essas pessoas? Como elas vieram parar na minha época? Aquilo tudo me deixava cada vez mais confusa. Senti um choque de adrenalina. Talvez tenha sido a raiva de me ver numa situação tão fora do meu controle. Isso sim era novidade pra mim. Sempre estive à frente das situações. Não estava acostumada a ser conduzida. E não seria agora. Parei de andar. Olhei para a mulher que me conduzia. Ela pareceu confusa com minha expressão. Puxei meu braço para fora do alcance das suas mãos. A encarei fundo nos olhos e disse: - Eu sei que você não entende minha língua, então vou usar a linguagem dos sinais. - e ergui o dedo do meio pra ela.

A pobre mulher ficou sem reação. Caminhei decidida em direção à porta. Eu iria descobrir quem eram aquelas pessoas.

Enquanto andava pensei que poderia ter sido muito rude com a tal moça. Mas eu estava irritada. Eu nem ao menos sei se eles não estão infectados. Depois de meses trancafiada, sem contato físico com as pessoas de fora, usando máscaras, respiradouros, vivendo um inferno... Eu não ia deixar um bando de viajantes do tempo me tocar como se isso não representasse risco algum para minha saúde. Eu já nem sabia mais qual era a sensação de um toque e isso fez com que ele me causasse uma certa repulsa instintiva. Continuei minha caminhada em passos firmes em direção à entrada do refúgio. Se eles vieram de fora, então era lá que eu iria encontrar as respostas. No caminho comecei a pensar no que eu estava tentando lembrar antes de desmaiar. Era sobre algo que o Thomas disse na noite anterior. Quanto mais eu andava e respirava o ar frio daquele pátio mais minha mente começava a ficar alerta. Como se a névoa se dissipasse também dentro da minha cabeça. Eu comecei a me lembrar. Sim. O Thomas estava contando sobre um estudo sem precedentes entre os cientistas. Uma forma de viagem no tempo. Os cientistas com os quais ele se comunicava estavam tentando resolver o problema na sua origem. Pesquisando casos paranormais. Pessoas que diziam ser capazes de prever o futuro. Charlatões em sua grande maioria. Mas existiam algumas pessoas que possuíam uma mutação genética genuína que dava a elas certas habilidades. Será que de alguma forma, esses cientistas criaram uma brecha no espaço-tempo e trouxeram para cá um avião carregado de pessoas do século passado?

Não faz sentido. Se essas pessoas estivessem no avião elas não teriam sobrevivido. Essa história inteira é uma loucura. Poderia muito bem fazer parte das outras loucas experiências que já vivi. Sim. Estranhamente essa não é vez que algo fora do normal acontece comigo. Desde criança fui rodeada de histórias incomuns. Conversar com pessoas que já haviam falecido. Ter visões de coisas que ainda não aconteceram. Me comunicar telepaticamente com uma pessoa distante são só algumas das minhas proezas que guardo em segredo para não parecer louca. Mas definitivamente eu não conseguiria imaginar uma multidão de pessoas do passado invadindo o presente. Ou conseguiria? Será que estou ficando louca? Será que tudo isso é fruto da minha imaginação? E onde diabos estão Thomas e os outros?

Me aproximo dos portões que agora percebo, estão sendo reconstruídos. Um soldado está na porta e vem em minha direção gritando alguma coisa. Provavelmente quer que eu volte pra trás.

Eu continuo decidida em direção à porta e ele vem me interceptar. Tento me desvencilhar dele. Ele me agarra pela cintura e tenta me demover da ideia de sair.

Eu me debato e grito com ele:

-Tire essas mãos imundas de cima de mim, seu imbecil!

Nesse momento um rapaz de óculos e barba ruiva, vestido de branco faz um gesto e grita algo para o guarda que chama sua atenção. Parece ser um médico. Ele gesticula e diz algo para o soldado que não compreendo mas parece ter funcionado. Ele me solta meio a contragosto e se vira para o médico. Diz algo que interpreto como uma ameaça. Talvez ele esteja dizendo que se eu sair a responsabilidade não será dele. Eu não me importo. Me viro em direção à entrada. O médico tenta me chamar... ele tenta dizer algo. Será que ele não percebe que é inútil? Eu não sei o que ele diz. Não sei o que estão fazendo aqui. Chego na entrada e finalmente consigo ter uma visão do mundo lá fora. Esse é o terceiro choque que tenho desde que começou essa loucura. Olhando lá para fora percebo que eu tenho feito a pergunta errada desde o início... Não é o que eles estão fazendo aqui... é o que EU estou fazendo aqui?

Dia 18 de maio de 1921. Dia 89 da descoberta.

Já faz algum tempo que não escrevo nesse diário então acho esse um bom dia para recomeçar. Faz 3 meses que descobri que viajei pelo espaço-tempo 100 anos no passado. De todas as habilidades que eu tinha essa se revelou uma surpresa até mesmo pra mim. De alguma forma eu e tudo ao meu redor num raio de 500 metros se teleportou ao passado e viajou pelo espaço numa distância inimaginável. Estou vivendo na Polônia no ano de 1921. Depois de 3 meses finalmente aprendi a língua que tanto me deixou confusa quando aqui cheguei. Viver no passado tem suas vantagens. No pós-guerra eu já tinha me acostumado a viver sem grande parte dos luxos e confortos da vida moderna. Desse modo minha adaptação foi fácil. A melhor parte é ter quem me ouça. Meu caso despertou o interesse de cientistas de toda a parte. Eles se mostraram muito interessados na minha história e finalmente sinto que não preciso me esconder nem fingir ser uma pessoa comum. Aqui todos sabem que sou especial e o quanto o meu conhecimento pode ajudá-los a evitar passarem pelo que eu passei. Faço parte hoje de uma equipe secreta do governo polonês, chefiada por Kristofer, o "médico" ruivo que descobri mais tarde, ser na verdade um cientista. Gosto da companhia dele e ele tem sido o principal responsável por me fazer aprender sua língua tão rapidamente. Eles têm estudado os estranhos objetos que viajaram comigo do futuro. Desde celulares, tablets, até objetos mecânicos mais corriqueiros encontrados no barracão como o velho isqueiro do Thomas. Hoje através de engenharia reversa estão conseguindo avanços que resultarão em inovações científicas num tempo muito anterior do que vivi na minha linha temporal. Mas a maior preocupação do nosso grupo é evitar que a catástrofe que vivi volte a acontecer daqui a 100 anos. Para isso estamos já trabalhando numa cura para um vírus que graças às minhas informações, sabemos quando e onde vai surgir. Já sabemos seu comportamento, suas mutações possíveis, sua forma de contágio e remédios mais promissores no tratamento. Infelizmente sem uma amostra do vírus, teremos um caminho longo pela frente. Por isso hoje partiremos em uma expedição para Wuhan, para investigarmos in loco onde tudo começou. Podemos ainda estar longe de desenvolver uma cura ou mesmo uma vacina. Mas ao menos desta vez o tempo está a nosso favor... 

;-)