VACINA EM TEMPOS DE CORONA

Acordei hoje psicologicamente preparado para ir me vacinar contra a influenza.

Repassei na minha cabeça todo o protocolo recomendado para a saída de casa, um boné para acomodar minha vasta cabeleira, uma bermuda velhinha e usada que poderia ser até queimada em casos extremos, tênis convenientemente do lado de fora e até um pequeno cartaz, escrito à mão, que dizia “IDOSO A CAMINHO DA VACINA”. Isso porque tenho recebido tantos vídeos sobre saída de velhos de casa, alguns até ameaçadores, que julguei por bem ter em mãos esse instrumento, caso fosse interpelado por algum desses vigias voluntários armados, no mínimo, das poderosas câmaras de seus celulares.

Desci pelas escadas com dois guardanapos no bolso, um para abrir a maçaneta do prédio na saída e outro para a entrada. Observei cuidadosamente a fila do lado de fora do posto, ainda pequena e com o distanciamento recomendado. Satisfeito, me posicionei ocupando evidentemente o último lugar. Mas o imponderável estava por vir. Aproximou-se para ocupar o lugar imediatamente atrás de mim, um senhorzinho moreno, forte, atarracado, um metro e meio de altura aproximadamente. Inquieto, mais próximo que o recomendado, louco para puxar uma conversa e eu fazendo cara de paisagem, profundamente arrependido de deixar o celular em casa (seria um escape). Resisti bravamente ao assédio, fingia não ouvir até ser salvo pelos dois próximos integrantes da fila: um não tão velhinho, mas que se apoiava numa bengala e o outro baixinho como meu vizinho, só que mais gordinho, com vasta cabeleira branca e ainda com mais disposição para uma boa prosa. Chegou falando ao telefone, fazendo questão de que todos ao redor soubessem que falava com um prefeito, sei lá de onde. Bastou desligar para que o da bengala, também louco por um papo, afirmasse que já quebrara duas vezes prestando serviços para prefeituras. Afirmou, ainda, que há oito anos tomava a vacina, com ótimos resultados, já que anteriormente passava 8/10 dias de cama por causa da gripe. O cabeça branca, já íntimo dos dois companheiros, agarrava-os pelos braços, numa intimidade de velhos amigos novos. Contudo, o meu vizinho imediato, o baixinho moreno, não me abandonara de todo, avançava como se fosse verificar o andamento da fila, passava rente me olhando, talvez sem entender a razão pela qual eu não aderira à saudável e amistosa conversa que se desenrolava a – quem dera – supostos um metro e meio que os separavam de mim. Não entenderia mesmo, já que os três, juntos, ocupavam o lugar que seria de um apenas na fila. Nessa altura eu já estava preparado para, se o inevitável ocorresse, concordar com absolutamente tudo que dissessem apenas com um vigoroso aceno de cabeça.

Sim, quase me esquecia de registrar, um senhor idoso, um pouco à frente na fila, tossia fortemente sem qualquer proteção. Menos mal, pois sua tosse era bem pesada, daquelas com bastante secreção, razão pela qual tive certeza que não nos oferecia qualquer risco.

Assim, com ligeira dor na consciência por não ter participado da alegre confraternização dos meus parceiros de fila, fui devidamente vacinado.

Em casa, cumpri fielmente todo o protocolo: tirei os sapatos, lavei as mãos até quase esfolar, pendurei o boné a 2 m de altura para não usá-lo antes de uma semana e tomei rigoroso banho, cujos detalhes prefiro não narrar.

Fernando Barreto – Brasília - 24/03/2020.

Ferreto
Enviado por Ferreto em 22/05/2020
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