As chuvas e a Tempestade da China

Choveu suave e continuamente toda a madrugada da última quinta para sexta-feira em Foz do Iguaçu. As águas do céu regaram generosamente a terra e reabasteceram as nascentes, tão castigadas neste maio de 2020, a ponto de provocar alertas da Defesa Civil para o iminente racionamento de água na cidade. Parece já não será preciso.

As chuvas desta Tríplice Fonteira têm uma particularidade: desconhecem as fronteiras. Tanto bendizem quanto arrasam, ao mesmo tempo, as cidades de três países. Por isso, os comentários do dia seguinte em Porto Iguaçu, Ciudad del Este ou Foz, cidades gêmeas, não carregam muita novidade. As árvores caem igualmente de um lado e outro e os carros são levados pelas mesmas águas, não importa o idioma ou o regime político de plantão. As águas do céu vão e vêm, saltam o Rio Paraná, pulam o Rio Iguaçu e vão levar o bem e o mal indistintamente às três regiões.

Em Pitangui, minha terra natal, Vovó Lóia reagia à ventania, à poeira levantada, aos redemoinhos onde bailava o Capeta, aos relâmpagos, raios e trovões clamando a proteção de seus santos

- “Santa Barba, São Jeromo”.

Eu, entre o menino e o rapazinho, quando caía chuva mansa, corria a esconder-me nas moitas do quintal do meu avô, onde permanecia cismando, enquanto a chuva perdurasse.

Dizem - embora não haja fundamento científico - que a chuva protege os namorados e amantes. Era festa das barraquinhas de Nossa Senhora do Pilar, naquele tempo retransmitida pela Rádio Emissora Pitanguiense, a Caçula das Emissoras Brasileiras. Conta um amigo, que, numa das noites da festa, um aguaceiro repentino fez o papel de fada madrinha a um casal surpreendido nas escadarias do Fórum, a cem metros acima, na Praça Getúlio Vargas. Até certo momento meros conhecidos, observando o movimento lá embaixo, foram se aproximando para esconder-se dos pingos e fugir do frio que aumentava gradativamente, até que tiveram de abraçar-se e, “já que tá”, por que não se beijar? Algumas famílias podem ter começado numa circunstância parecida, por culpa - ou mérito - da chuva. Nessa noite, a música de fundo era os leilões de frango assado e os comerciais da festa, mas quem se importa?

Sobre a chuva unir casais, se é verdade, também não há discriminação de língua ou fronteira. Pulo para Klampenborg, na grande Copenhague, no final dos anos 70, onde um jóquei brasileiro aposentado conheceu uma extravagante cigana dinamarquesa e começou a cortejá-la. Uma tarde do esfuziante verão nórdico, levou-a a apostar nos cavalos no hipódromo do lugar e, depois de não ganhar no jogo, vislumbrou a perspectiva de ganhar no Amor. Convidou-a para caminhar no parque próximo, onde havia uma quermesse. Apreciaram o movimento, ele comprou “naer koes” - um chocolate que significa, mais ou menos,” beijo de língua” em dinamarquês - e se dirigiram à mata vizinha. Enquanto caminhavam, o tempo começou a virar e caiu uma tempestade raramente vista na região, com direito a raios e trovões, uma verdadeira chuva de canivetes.

À medida que a chuva aumentava, embrenhavam-se mais na mata, buscando proteção da vegetação. Nisso, foram se aproximando dos troncos, sem se preocuparem com os raios que caíam por todo lado. Terminaram agarradinhos um ao outro e quase às árvores também. Quando a chuva diminuiu, passaram pela quermesse já vazia, entraram no carro, ligaram o ar quente, botaram a roupa pra secar ali mesmo e foram “ajustar contas”, como ele traduziu. Disse que passaram a noite no carro, esperando as roupas secarem.

Todo esse passeio com a chuva e o passado vai desaguar hoje, um momento arrepiante da História. Assim como a chuva que cai em Foz do Iguaçu desrespeita fronteiras, também a Tempestade originada na China em 2019 ataca indiscriminadamente crianças e adultos, pobres e ricos, cidadãos comuns e celebridades. Agride simultaneamente em Dublin, Nova York, Belo Horizonte, São Paulo, Pitangui, Maravilhas e Foz do Iguaçu: Urbi et Orbi, grotões e megalópoles.

Causam arrepios as ruas vazias e o dilúvio de informações contraditórias que ora anunciam a cura, logo descortinam o Apocalipse. Parecemos personagens de um filme de terror, presos em casa, reencenando a tragédia medieval da Peste Negra. De repente, a Morte deixou de ser uma preocupação individual, é um pesadelo coletivo. Parece que todas as outras formas de morrer se esgotaram e nos aterroriza saber que é preciso muito pouco para acabar com a Humanidade. Nesse momento, poderia plagiar Vovó Lóia e conclamar os favores de seus santos, agora para acabar com uma angústia universal:

- “Santa Barba, São Jeromo.”

William Santiago
Enviado por William Santiago em 23/05/2020
Reeditado em 24/05/2020
Código do texto: T6956208
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