ENCERRAR DE UM CICLO

O ciclo da vida é uma coisa natural. Nascer, crescer, reproduzir e morrer. Nesse meio longo tempo, porém ínfimo perante a idade da Terra, há algo mais nesse relógio da existência. São as variáveis do convívio, o nutrir de sentimentos, a absorção de experiências, um legado que é transmitido por gerações. São ensinamentos para enfrentar a vida desafiadora desse mundão.

Uma rapinha bem torrada formada sob o arroz – miscelânia amarronzada e preta de um cheiro saboroso de coisa queimada – devido a um esquecimento repentino da panela ao fogo alto, traz à tona a lembrança de um domingo de Páscoa de 2012. Naquela ocasião dominical, tomado pela água na boca, me afoguei em um, dois ou três pratos de rapa de arroz feitos pelas mãos enrugadas da experiência, mas com um toque especial da medida correta e precisa de vovó Ercília. Até esse domingo, os fins de semana sempre me reservavam a regalia do arroz torradinho, daquela riqueza queimadinha que me aguçava o paladar por semana inteira. Era uma das habilidades da minha avó, um talento indescritível no mundo da “alquimia”.

Como de praxe no início do entardecer, vovó havia saído com sua trupe, dessa vez para sua última aventura às margens do rio Pardo, seu caudaloso confidente. As varas de pesca de fina taquara, os anzóis e o velho bornal já surrado das outras investidas nesse curso d’água estavam todos muito bem preparados e certamente uma sacolada de peixes seria levada para casa. As costumeiras pescarias eram o refúgio dos estresses da vida, momentos de paz espiritual e selavam o abraço simbólico recíproco entre vovó e o enamorado rio.

Infelizmente, pela madrugada de segunda-feira, fui acordado pela algazarra desesperada e ensurdecedora do celular. Antes do alvorecer, para tristeza dos familiares, mais um ciclo de vida fora encerrado de forma inesperada. Em um primeiro momento, xinguei o relógio biológico, chamei-o de imprestável, estúpido e cruel por levar minha vózinha para algum lugar da imensidão do universo. Eu não estava preparado para o pior. Como pode tamanha covardia com minha velhinha amável e humilde?

Levou um tempo demorado para de fato compreender que a nossa vida é efêmera A bateria acaba, a corda afrouxa, o relógio é certeiro. Cada dia é um dia a menos. Apesar dessa triste experiência da minha vida, a saudade que tenho hoje da vovó é um sentimento de felicidade por ter convivido com tão boa pessoa.