O livro e os livros que geram

As “longas espirais metálicas” que anunciaram a morte do pai do poeta, trouxeram-me a expectativa de vida. Não “uma vidinha qualquer, para quem não aguenta a vida”, mas algo parecido àquela “vida em abundância” que o Homem anunciara dois mil anos atrás. A voz amiga, após os cumprimentos iniciais, agiu como porta voz de outras amigas: Estamos lhe convidando para participar de um clube do livro, o que acha? Vai ser legal se você aceitar. Com o meu aceite seríamos dez, ou seja, Dupré perdeu para nós com uma diferença de quatro. Para atiçar a minha vontade, e como se dissesse, não estaremos “sozinhos”, o rol dos participantes foi desfiado. E era uma lista respeitável, respaldada pela presença de uma professora de literatura, como se a dizer: não estamos de brincadeira.

Claro que aceitei. A época das leituras técnicas tanto da economia, como da pedagogia, já havia se esticado muito. Era chegado o tempo de trazer de volta o costume passado, e beeeem passado, das conversas na mesa de bar, com cerveja e violão, tendo como liame um poeta, com seus versos inspiradores, ou um proseador com as suas histórias com fim, ou sem fim.

A cada leitura uma descoberta (a tal vida em abundância a que me referi) e um novo livro sendo gerado pelas especulações das várias cabeças a pensar sobre um mesmo objeto. Sempre um fato (o mesmo) visto por vários olhares. A menina que intermediou a minha chegada ao clube até disse uma vez: Gostei mais do livro que você leu (e relatou), do que o que o autor escreveu (e que ela leu). O que só confirma o conceito de Umberto Eco. E complemento: tanto a prosa não comporta apenas uma interpretação, como a poesia, no dizer do carteiro ao Poeta, “não pertence a quem a escreve, mas àqueles que precisam dela”.

Livro vai, livro vem, autores que passam, autores que ficam. Novos mergulhos na mesma fonte? Pra mim funcionou assim com Isabel Allende e com Rosa Montero: um livro só, não basta. Mas Montero me pegou de jeito. Não só pelos livros, mas pelos textos do El País, descobertas impulsionadas pela curiosidade que o isolamento social tem desenvolvido para a nossa própria sobrevivência. Cheguei então em “A Louca da Casa”, que pelo menos quatro pessoas do grupo já tinham lido. E que é uma leitura singular até pelo que conta a própria Rosa. Planejava escrever sobre algo, mas lhe fugiu ao controle. Isto porque, “os livros têm cada um sua vida própria, suas necessidades e seus caprichos”, o que acabou impactando no projeto original, levando-a a não só “tratar da literatura, mas também da imaginação”.

E, por falar em imaginação... é aí que entra “M”, que personificou pra mim ao que a imaginação pode levar. Tanto o autor como os leitores. As verdadeiras construções de outros romances sobre o romance lido. “M” teria sido um personagem real, ou alvo da imaginação da escritora? A sua primeira aparição no livro acontece na página 25, e é descrito como sendo um “ator europeu que acabava de ter um grande sucesso em Hollywood e tinha ficado famosíssimo”. A cidade era Madri. Rosa estava na época com 23 anos e, tendo nascido em 1951, o ano em questão é 1974, que vivia os estertores da era Franco. Adiante ela revela que M era 9 anos mais velho, o que leva o seu nascimento para 1942.

A narração do fato ocorrido é antecedida por uma advertência: “...a paixão geralmente não pare filhos, pare monstros imaginários. Ou, o que é a mesma coisa, imaginações monstruosas”. Nessa versão da história (a primeira) aparecem também como personagens o carro vermelho, o pai e os “cinzas”. Não há um final feliz.

Na continuação da história, já na página 93, “M” reaparece, mas o acontecimento narrado toma outra direção. De início até pensei numa falha do livro, em sua montagem, aparecendo a mesma página repetida. Ledo engano! Estava certa a encadernação. O “M” é o mesmo “M”. O final da história é diferente, não sendo também um final feliz. De igual, o carro vermelho, mas sem o pai e sem os “cinzas”. Mas ela faz uma advertência, um pouco antes da narrativa: “Será que no fundo da nossa consciência sabemos que a paixão amorosa é um invento, um produto da nossa imaginação, uma fantasia?”

Avançando na leitura, lá pelas páginas 159 e 160, ela diz: “Livros que li, pessoas e situações que conheci, filmes vistos, coisas que algum dia aprendi, tudo se confunde e se enreda lá por dentro. De fato, quando transcorre certo tempo, digamos, vinte anos, de alguma coisa que lembro, às vezes é difícil distinguir se vivi aquilo, ou se sonhei, imaginei, ou talvez escrevi (o que mostra, por outro lado, toda a força da fantasia: a vida imaginária também é vida)”.

E eis que surge novamente “M”, na página 169 (agora não mais como surpresa, ao contrário, era uma aparição aguardada, ou pelo menos uma explicação do seu aparecimento múltiplo na história). O que antecede a sua entrada? “As histórias amorosas podem ser francamente disparatadas, verdadeiros paroxismos da imaginação, melodramas água com açúcar de paixões confusas. Ao longo da vida eu inventei algumas relações assim e agora vou me permitir relatar uma delas, como exemplo de até onde pode nos levar a fantasia (e a loucura)”. Desta vez surge na história (além do carro vermelho e da volta dos “cinzas”) outros personagens: a irmã, o haxixe, a prisão, o feliz reencontro amoroso (ufa...).

Navegando até a página 190 encontramos: “Por outro lado, e para complicar ainda mais as coisas, muitos leitores caem no equívoco de acreditar que o que estão lendo realmente aconteceu com os romancistas”. E ela finaliza, na página 194, no Post Scriptum: “Tudo o que conto neste livro sobre os outros livros ou outras pessoas é verdade, quer dizer, responde a uma verdade oficial documentalmente verificável. Mas receio que não possa garantir o mesmo sobre o que se refere à minha própria vida”

Então, diante dos fatos, como é uma “verdade oficial documentalmente verificável”, segundo o que está exposto nos excertos, sou levado a concluir que a história é inventada (muito bem inventada, por sinal), afinal esse é o ofício do escritor. Mas também procuro me valer do poeta lusitano, arriscando a dizer que o escritor também é um fingidor, já que ele “finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”.

Mas há outros enredos que o original propicia, amparados na “verdade oficial documentalmente verificável”, como ela chamou a atenção. O verificável está no Google. Atores que fizeram sucesso em Hollywood na década de 70 cujos nomes começavam com a letra M. Identifiquei 5 (Michel Caine, Michael Douglas, Malcolm McDowell, Martin Sheen e Michael York). Mas tem dois filtros: deve ser europeu e ter nascido em 1942. E só sobra um: o britânico Michael York. Em 1974 filmava pela Universal Pictures os filmes Assassinato no Expresso Oriente e A vingança de Milady. Neste ele fazia o papel de D’Artagnan. E o filme foi uma produção espanhola. Ou seja, documentalmente, “M.” existiu. Posso então concluir, diferente da conclusão primeira, que a história é real? Tal como Rosa, vou me valer de Barthes: Porque toda autobiografia é ficcional e toda ficção, autobiográfica.

Este é apenas um novo enredo que propicia uma outra história. Seus ingredientes: pesquisa e imaginação. Quem sabe uma busca mais apurada não afastará o “M.” de Michael York? E a literatura é isso, não apenas ler o que a imaginação de um concebeu, mas dar asas à nossa imaginação para também sermos coautores.

Entrou por uma porta e saiu pela outra, quem quiser, que conte outra.

Fleal
Enviado por Fleal em 28/05/2020
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