Uma história de Natal

Uma história de Natal

Alexandre Santos

Noite de Natal. Em torno da mesa farta, a família inteira: meu pai, o velho general Durval, a minha mãe, por todos conhecida como Dona Lúcia, o primogênito Durval Jorge, a minha cunhada Joselma, minha mulher Deinha, meu filho Guilherme e eu. Fato raro, pois, entregues aos nossos próprios afazeres, nunca estávamos todos juntos e, embora jamais saísse da casa, ausentada pela doença, mamãe quase nunca encontrava alguém, saindo do esconderijo onde se enfurnava por dias a fio apenas em ocasiões especiais.

Como o Natal é sempre especial e consegue despertar o espírito que anima até os corpos mais combalidos, no final da tarde, provavelmente resgatada da letargia pelos cheiros dos quitutes que a cozinheira Leonor preparava, mamãe despertara do longo sono e, tão acordada como qualquer outro, reconheceu a todos e, com o sorriso de sempre, anunciou que naquela noite jantaria com a família. Com o time completo, a ceia foi maravilhosa. Entre uma garfada e outra, embaladas por gargalhadas e esquecidas do tempo, as conversas sobrevoaram o passado preenchendo lacunas, retomaram assuntos pendentes atualizando memórias e sonharam planos e vontades como se o futuro estivesse à nossa disposição. De sua parte, sentada a cabeceira da mesa, encaixada na posição mais adequada à cadeira de rodas que a transportava, Dona Lúcia deu curso a natureza gulosa e, sem ligar para as proibições médicas e rechaçando lembretes, comeu de tudo e comeu com o gosto que jamais perdera. Sempre entretida com um pedaço de peru ou um naco de pernil, mamãe curtiu o jantar como se aquela fosse a última refeição. Os que a conheciam desde a juventude sabiam que ela amava todas as festas, dedicando a Papai Noel o mesmo fervor que a fazia devota de Cosme e Damião, Nossa Senhora de Aparecida, São João, São José, Reis Magos e de todos padroeiros das grandes festas. Agora, sentindo a vida esvair a cada instante, sempre que podia ela aproveitava ao máximo os momentos, fossem eles uma conversa, um programa de televisão, uma refeição ou qualquer outra coisa. Naquele momento, o que ela queria era encher a pança e matar as saudades das passas, das nozes, das avelãs, das castanhas, dos fios de ovos, das farofas. A alegria da noite aumentou com a chegada de Flávio Sirodot, velho amigo da família que, acompanhado da esposa Tereza, fazia-nos a tradicional visita de fim-de-ano à família.

De repente, como se atendesse a um chamado, Dona Lúcia interrompeu a comilança e, dizendo-se satisfeita, com um sorriso melancólico pediu para ser levada ao quarto. Como aquela não era a primeira vez que aquilo ocorria, o acontecimento não surpreendeu a nenhum de nós. E, cumprindo a tarefa que tomara para si há algum tempo, deixando as conversas na sala, Joselma conduziu mamãe ao quarto, onde (todos conheciam a rotina) aplicaria os cuidados naturais aos enfermos e ficaria até vê-la ronronar, entregue placidamente aos domínios de Morfeu. Isto demoraria, pelo menos, uns vinte minutos.

Não foi assim desta vez.

As conversas na sala foram interrompidas pela chegada abrupta de Joselma.

– Dona Lúcia morreu – disse com a voz sumida.

Todos nós corremos ao quarto. Sobre a cama, o corpo inerte. Coração parado, pele sem cor, olhos sem brilho, nenhuma respiração, nenhum pulso, nenhuma vida. Instalou-se um pandemônio. Papai, o velho e sisudo general, desabou e, como se sentisse o chão desaparecer sob os pés, sentou na cama e, sem dizer uma única palavra, vendo distanciar a referência que o acompanhara nos últimos 50 anos, passou a olhar o vazio, balançando a cabeça como se, nisso, houvesse consolo ou esperança. Deinha levou Guilherme para a varanda “para ele não ficar assustado com a visão da morte”. Meu irmão rejeitou o consolo oferecido por Flávio e começou a zanzar pelo apartamento repetindo “mamãe morreu, mamãe morreu”. Mais prática, sob o olhar estarrecido de Leonor, Tereza manteve o sangue frio e, cheia de iniciativa, fechou os olhos de mamãe e começou a entoar uma oração de paz e harmonia.

A morte de minha mãe. Aquele fora o presente que o Natal me reservara.

Olhando o corpo sobre a cama, senti crescer um tipo inédito de revolta e ceticismo. Entregue à súbita descrença e desesperança, me perguntei se aquela era hora de alguém morrer. O Natal deveria ser um momento de festa, não de tristeza. Ninguém deveria morrer num dia de Natal.

Não sei quanto tempo permaneci mergulhado em mim mesmo, pensando na injustiça da vida, lembro apenas que um ímpeto inexplicável me arrebatou e sem delongas me empurrou ao corpo com urgência. Naquele momento, surgiu um Alexandre que eu não conhecia. Como se fosse um médico experimentado, pouco se lixando para a confusão reinante no apartamento, o novo Alexandre afastou Tereza, que continuava a rezar, e mergulhou sobre o cadáver, iniciando uma massagem cardíaca, dessas que se vê em filmes. A movimentação despertou uma onda de esperança e, pouco a pouco, extinguiu a barafunda pela casa, atraindo a todos para o quarto, onde se formou uma corrente de fé. Lembro a delicadeza como, sem ligar para o tempo que parecia interminável, pressionei o frágil peitoral da minha mãe. Um minuto, dois minutos. Uma hora. Não sei. Sei, apenas, que, de repente, contrariando a lógica da morte, num acesso de tosse, mamãe abriu os olhos, retornando de um lugar para onde não deveria ter ido. Não sei explicar, mas, de um instante para o outro, como se adquirisse as características dos que estavam no entorno, sua pele recobrou brilho, os olhos resplandeceram vida, o coração, que por instantes, permanecera mudo e imóvel, voltou a bater. Mamãe retornara à vida. Mesmo assim, o outro Alexandre ainda permaneceu em mim alguns instantes. Reagindo a tentação de comemorar a ressurreição como os demais, sustou a euforia de Leonor para pedir-lhe sal, que, como se fosse uma coisa corriqueira, esfregou nos lábios de mamãe. Além de elevar-lhe a pressão, o incômodo sabor salgado a despertou, aumentando o surto de tosse. Pronto! Mamãe estava conosco. Terminara a missão daquele Alexandre. Era minha hora de reassumir.

Levada por Durval Jorge, mamãe passou o resto da noite na UTI do Hospital Geral do Recife e, já no dia seguinte, depois de passar pelos exames de praxe, estava em um apartamento normal, de onde, dois dias depois, voltou para casa, para a rotina de sempre em nosso convívio.

Hoje, passados muitos anos desde aquele Natal, ainda não compreendo o que, de fato, aconteceu naquela noite ou a natureza da força que desafiou a morte, fazendo-a recuar, revertendo a grande inflexão da vida para deixar mamãe mais alguns anos conosco. De qualquer forma, reconhecendo a efemeridade de nossa passagem pela Terra e longe de ousar qualquer tentativa de desvendar o mistério da vida, não tenho dúvidas de que ter mamãe de volta naquela hora foi o maior presente que já recebi e que aquele foi o melhor Natal que já vivi.

(*) Alexandre Santos é presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco, ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural