VIRTUDES, POLITICA 
 E APRENDER A DANÇAR


 
alguém que saiba dançar
Em priscas eras na Babilônia viveu Zadig. Jovem de boa índole, bebeu na fonte de Zoroastro e deste profeta longínquo aprendeu antigas sabedorias; moderar as paixões; tolerar as fraquezas humanas; evitar o amor próprio, balão cheio de vento a gerar tempestades ao toque de um alfinete; generosidade incondicional, dar de comer aos cães mesmo que o mordam.

Ciência e o humano, Zadig os conhecia bem. E não era para menos, nasceu ele da pena de François-Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire, em 1648. Para apresentar o personagem que viveu anos apenas em sua imaginação, o arauto da razão escreveu o livro “Zadig ou o Destino”. O conto “A Dança”, é deste livro.

Começa assim. A pedido de um amigo, Zadig despediu-se de seu amor Astartéia e viajou a negócios para a ilha de Serendib. Lá fez muito amigos, ajudou alguns, aconselhou outros, apaziguou rixas antigas. Sua fama de sábio chegou ao Príncipe Nabussan. Havia em Serendib muitos larápios, roubava mais quem mais pudesse, uma tristeza para o bondoso infante.

Deu-se que Nabussan precisou contratar um novo recebedor-geral da ilha, um honesto, mas não sabia como, nem onde. Chamou Zadig para ajudá-lo e ouviu um estranho conselho: mandar dançar em sua presença todos os candidatos a tesoureiro. “Estais a brincar?”, duvidou o Príncipe. Mas acedeu face a convicção de Zadig.

O edital foi publicado e na primeira lua da noite do crocodilo os candidatos deveriam comparecer à antecâmara de sua majestade vestidos em trajes de seda fina. Se candidataram 64 ilhéus. Antes de adentrar à sala do monarca, todos deveriam passar, um de cada vez, por uma galeria escura onde foram depositados tesouros do reino.

Quando afinal todos haviam chegado ao salão o monarca pediu que dançassem. Uma lástima a dança dos candidatos, todos muito durões, sem graça, braços colados ao corpo.

Com exceção de um que parecia uma pena, tal a leveza com que acompanhava os acordes dos violinos. O novo tesoureiro, contratado, sabia dançar.

Ao passarem na galeria escura (Corredor da Tentação, chamou Voltaire), momentos antes, a sós, 63 deles encheram os bolsos e as roupas com os tesouros públicos. Ficaram pesados e peso e dança não combinam.

O destino destes 63 gatunos? Pagaram uma multa e foram soltos. Mas Voltaire profetizou seus eventuais destinos em outros conhecidos reinos. Seriam todos empalados num deles, olho por olho...; noutro, de parecença familiar a nós, seriam submetidos a um processo jurídico interminável, cujas custas processuais excederiam em muito os valores afanados; e haveria um reino em que os 63 seriam inocentados e o dançarino executado, a chamada república dos diabos, uma possibilidade aventada por Kant anos depois de Voltaire.

Nessas diabólicas repúblicas nem os hospitais, em tempos virais, ficam ilesos dos rapinantes. “Magna latrocinia”, diria Santo Agostinho.

O que pode nos ensinar esta pequena parábola? Maquiavel, se em Serendib vivesse, daria conselhos ao Príncipe, constataria a degenerescência na ilha e proporia o início de uma nova ordem das coisas. Para aplacar os açoites da fortuna, ensinaria a arte da virtú pagã.

Na ausência local e temporal do secretário florentino, coube a Zadig, com os recursos que dispunha, a tarefa quase impossível de encontrar um cidadão virtuoso para bem gerir o dinheiro da comunidade. É sobre virtude que estamos a tratar.

a morte do dever ser
Adianto que ousarei ponderar parcialmente com dois filósofos de nomeada, os quais admiro, Espinosa e Marilena Chauí - culpa de Kant que nos ensinou a pensar por conta própria – sapere aude!

Em termos resumidíssimos é o seguinte. Espinosa, antes dele Maquiavel, foram os inventores da modernidade ou do realismo político, ao separar a moral privada da pública. Criticaram o moralismo que idealiza a natureza humana como racional e virtuosa, que não existe em lugar algum, e despreza a realmente existente, a “veritá effettuale”, célebre frase de Maquiavel.

Chauí, citando Espinosa, considera que os seres humanos são movidos pela inveja, orgulho, cobiça, vingança, maledicência etc. não por vício, mas por natureza. Mas também são impelidos por paixões de generosidade, misericórdia, piedade, solidariedade. Um parêntese. Não há como discordar de Shelling, “o homem é a coisa mais incompreensível do mundo”.

Esperar, sempre seguindo Espinosa, que os humanos na política se desfaçam das más paixões para abraçar apenas as puras, é ilusão e “utopia”, e o Estado que dependa das virtudes pessoais de alguns dirigentes é “um Estado fadado à ruína”. Daí o foco no ordenamento institucional de forma a obrigar a gestão dos dirigentes públicos de acordo com o interesse geral, e não à mercê de suas qualidades ou defeitos.

A ênfase recai toda nas virtudes ou vícios públicos. Nas palavras da própria Marilena Chauí a “corrupção, portanto, não deve ser atribuída a vícios privados de governantes e cidadãos, mas às condições do exercício do poder. Assim, a crítica moralizante à corrupção cede lugar à crítica cívica das instituições, isto é, à moralidade pública propriamente dita.”

Um problema: “às condições de exercício de poder”, não tem bolsos, nobre filosofa. São os indivíduos governantes, destes que não sabem dançar, os verdadeiros abiscoitadores do erário público.

um lugar para as virtudes
Plena concordância quanto ao papel das Instituições democráticas, o Estado e suas leis, como base de uma República. Chauí inclusive elencou reformas, jamais implementadas, para aperfeiçoá-las e livrá-las de privadas apropriações.

Mas e quanto às virtudes individuais dos governantes? Desaparecem na máquina fria das instituições? Jogadas na beira da estrada, estranhas que seriam ao jogo político? Relegadas face à moralidade pública que as coage para o rumo do bem comum?

Por estas veredas perigosas e jamais aplainadas da relação entre moral e política, caminho junto com Norberto Bobbio. No final da vida, no livro Elogio da Serenidade, ele endoçou a frase “o fundamento de uma boa república, mais até do que as boas leis, é a virtude dos cidadãos”, incluindo os governantes. Diria que o fundamento é a interação dialética da dupla instituição/virtude.

Na mesma toada o artigo do jornalista Pepe Escobar “Confúcio está ganhando a batalha contra a Covid-19”, ao propor a hipótese de que, mais que as tecnologias, as virtudes emanadas da tríade Confúcio, Buda e Lao-Tsu foram “absolutamente essenciais” para a reação serena ao Covid-19 das populações asiáticas e seus líderes.

Sem falar de figuras como Gandhi, Pepe Mujica, Nelson Mandela, Abraham Lincoln, Francisco, Václav Ravel, espíritos que baixam instantaneamente quando se puxa tais assuntos, cujas virtudes inspiram coletividades mundo afora e dispensam comentários. Zygmunt Bauman considerou Ravel o último grande líder "político-espiritual", capaz de influenciar o curso da história, em tempos de falência institucional. Uma nova "caixa de ferramentas" para a ação coletiva ainda está em construção, constatou Bauman.   

Trazendo a conversa para nosso alqueire, façamos um sobrevoo na reunião “exemplar” do dia 22 de abril. Recordemos. Sim, ela ficará na história como tragédia na tragédia. Entre as asneiras e impropérios de uns e o silêncio de outros, o que restou foi o vácuo total de virtú, de foco, debates e ações responsáveis para mitigar a catástrofe do monumental golpe da fortuna. E o bom “ordenamento institucional” não estava lá para resguardar o bem público.

“Homo locum ornat, non locus hominen”. Tradução: “é o homem que dignifica a posição, não a posição ao homem” – um ditado latino impecável e oportuno para estes tempos tortos. 

Uma nuvem cinza de indignação levita neste céu continental há alguns meses: indignação com a frieza e descaso do Presidente e auxiliares, face a maior das tragédias humanas, a morte de dezenas de milhares de brasileiros.

Leonardo Boff em seu tratado essencial “Virtudes para outro mundo possível” e em artigos recentes, elenca e desenvolve as virtudes imprescindíveis para agora, para este mundo que fareja o possível e que necessita com urgência de cuidados, da solidariedade, empatia e compaixão, as responsabilidades coletivas, a hospitalidade.

Boff terminou um destes artigos com uma frase para se pensar: precisamos de “valores que permitam sonhar e construir outro tipo de mundo biocentrado, sociedade globalmente integrada, fortalecida mais por alianças afetivas do que por pactos políticos”. Sim, as alianças afetivas, a vida, os princípios, os valores, o bem comum, a natureza tem precedência sobre a política e a economia.

Sabemos que a crise política se arrasta há muito tempo, bem antes da queda geral ao buraco negro. É um fenômeno mundial, mas fiquemos no Brasil.

Com indignação e perplexidade somos acanhoados no dia a dia com o Som e a Fúria que vem de Brasília. Uma política pequeníssima e venal; fascista; autocentrada; cachorro mordendo o próprio rabo; de costas para o país e seus dramas; defasagem monstruosa entre o mundo das instituições e o nosso mundo, o mundo da vida.

outra política possível
Na Encíclica Laudato Si, o Papa Francisco fala de vários países governados “por um sistema institucional precário, à custa do sofrimento do povo e para benefício daqueles que lucram com este estado de coisas”. Entre estes, as castas privilegiadas no próprio Estado e interesses privados capitalistas da sociedade civil. O Brasil se encaixa no figurino.

Diz mais, Francisco, “Precisamos duma política que pense com visão ampla e leve por diante uma reformulação integral...”. Uma ecologia integral. Diante de tantas crises civilizatórias, vírus, racismo, misérias sociais, esgotamento de Gaia, nunca tais palavras, somadas às da Carta da Terra “O destino comum nos conclama a buscar um novo começo” fizeram tanto sentido.

Precisamos de uma Política com P maiúsculo que não se limite às regras, ao status quo, mas à imaginação, a revolução republicana. Esta Política, "não deve ser a arte do possível, mas como fazer inevitável o impossível", nas palavras de Rudger Bregman, em seu livro Utopia para Realistas. 

A dimensão social da ecologia integral explica nossas misérias políticas. Sem o mínimo de igualdade não há liberdade. Sejamos francos, como falar em República e democracia no país mais desigual do mundo? 

Mas nem tudo é desgraça, ativemos nossos sonhos diurnos. Lembra o Papa: “O mundo é algo mais do que um problema a resolver, é um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor”.

Na alegria, no louvor e na leveza. Nos despojemos dos inúteis lastros, do culto ao ouro, do excesso do consumo, e vamos todos aprender a dançar.


O mundo aspira leveza, Atlas não aguenta mais suportar tanto peso. Ele quer colher maçãs no jardim dos deuses, terra das hespérides.  
luiz cezare vieira
Enviado por luiz cezare vieira em 31/05/2020
Reeditado em 09/06/2020
Código do texto: T6964018
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