NINGUÉM NUNCA QUIS SABER.

“Ninguém nunca quis saber dos seus medos”. Aqueles da infância, do leve abandono, ou até do mais severo. Ninguém nunca lhe perguntou do medo de escuro, da fome, da sede por leite e das brigas nas quais cobria os ouvidos e os olhos de desespero.

Nem quiseram saber das manhãs solitárias nas quais ficava no portão olhando os transeuntes, um refúgio para não ficar trancada na casa, onde havia monstros que a só a sua imaginação infantil podia criar. Nem da indiferença dos tios e escárnios do vizinho.

Nem lhe perguntaram da insegurança na volta da escola, sozinha pelos trilhos da vila esquecida.

Não lhe ensinaram as lavar as mãos, nem escovar os dentes. Isso era parte daquele pacote do abandono. E na mais perfeita crueldade deixaram que ficasse banguela em plena adolescência, o que a marcou anos a fio, a despeito de todas as próteses físicas que usou, mas que não conseguiu achar uma que curasse as feridas emocionais.

Não lhe perguntaram quais eram seus sonhos, nem se as escolhas que lhe fizeram eram as mais acertadas. Ignoraram seu desejo pelo esporte e trancaram seus sonhos em uma vida operária imposta. Confiscaram seu salário e gritaram a plenos ouvidos que ficasse quieta. Que a lei era aquela e que nada que dissesse mudaria aquele rumo.

Insultaram sua rebeldia e a taxaram de difícil. Ignoraram suas mãos calejadas do trabalho operário e fizeram vistas grossas quando ela as escondia na aula noturna, a qual ia morrendo de sono e desespero.

E ninguém também nunca questionou as suas decisões equivocadas na juventude, porque agora aquele era o pacote da rebeldia. Ninguém barrou seu caminho quando ela disse: basta!

Ninguém segurou mais os seus sonhos, a não ser a vida, que é cruel e sorrateira.

Mas agora ela já sabia disso. E havia crescido. E tinha dentes, e fortes, implantados com o seu próprio dinheiro. E agora “ela sabia morder.”.

Angela Gasparetto
Enviado por Angela Gasparetto em 07/06/2020
Reeditado em 18/06/2023
Código do texto: T6970264
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