NÃO TE PERDOO!

-Dia!, já pedindo mil perdões, disse o transeunte.

-Péssimo dia! Respondeu o Romão Fagundes já sabendo que aquilo seria só um prelúdio de como seria o seu dia.

Começo a achar que a solidão é uma lenda, uma quimera, será que nunca poderei curtir a deliciosa paz de ficar sozinho? Será possível meu Senhor Bom Jesus?

Pronto, agora virei um ateu religioso.

Já vivo nessa cidade para não precisar falar com ninguém. Não quero saber e nem falar nada. É claro que eu sei muito bem ser autossuficiente. Nem a minha ajuda quero pedir para não me irritar comigo mesmo. Minha essência de ermitão é constantemente desrespeitada. Eu não quero nem ser visto como uma sombra que passa, vai encontro um chato que gosta de dar um “gratidão” para sombras. Saibam todos, sombras não gostam de receber bom dia, sombras não gostam de sorrisos, não se deve nem balançar discretamente a cabeça para elas, só ignore.

-Moço! Pode me informar às horas? (Mais um chato em meu caminho!)

- Nããããão! Fui enérgico na resposta.

Que diabos! Tenho que me despir desses chamarizes, esses apetrechos são verdadeiras iscas humanas. Preciso urgentemente me livrar desse relógio.

Preciso aprender a me guiar pelos pontos cardeais, igual acontece nos filmes americanos, o cara fala pelo rádio o número de algum código policial e manda: “Um sedan azul seguiu por noroeste, blablabla...”, cara, brasileiro não sabe nem onde tem um norte, quanto mais saber onde é o noroeste. “Fácil pra mim não gostar de brasileiro!”.

A parada é focar no sol. Li em algum lugar, naqueles deliciosos momentos de procrastinação, quando você precisa entrar no computador apenas para enviar um e-mail e pá! Você pesquisa da bolsa de pandora (por favor, alguém abra!) até a nova receita de pão de queijo. Esse último aí até nem desgosto, mas vou ver uma forma disso acontecer. Depois dessa leve procrastinada, vou falar do que li, era para prestar atenção no local do tronco das árvores onde teria uma maior quantidade de musgos, ali seria um indicativo de onde nasce o sol, acredito que por conta de uma maior incidência de luz nele (é sério mesmo que contei essa história?). Eu avisei que também sou muito chato! Que nojo desse musgo!

Bom mesmo são essas maravilhosas máquinas de autoatendimento, coloco uma nota, retiro e tomo meu café, na outra pego um dinheiro, compro tudo sem nenhum chato para me incomodar. Lá na terra de rico, deve ter máquina pra vender até cacho de banana de ouro.

-”Liceeênça” Moço! Olha aqui pra você vê, pode me emprestar seu óculos rapidinho aí? É que estou tentando ler isso aqui, oh!

Você tem noção de como corri? Sorte que no meio do caminho tinha um ótica. Cara! Tinha uma ótica no meio do caminho, entrei e apontei para uma prateleira que mostrava uma lente de contato, nem olhei pra cara do vendedor, já era suficiente ele ter tomado banho do perfume mais doce e enjoativo do mundo, misturado com um creme de cabelo pior ainda, aquilo entrava como fel no meu nariz.

Qual é o grau senhor? Tem receita? (Ele era um perguntador nato, deve ser um jornalista frustrado):. Fiz o número três com os dedos, mas o que queria mesmo era mostrar só o do meio.

Qual a forma de pagamento Senhor? Dessa vez ele pediu, mostrei o dedo do meio, o maluco entendeu aquilo como débito, não me pergunte como. Consegui finalmente escapar dali. Olha, ganhar fama de mudo até que foi bom! Resolvi tudo sem falar uma palavra. E o melhor, ninguém encostou em mim.

Na rua, esmaguei com muito prazer aqueles óculos, deixei até uma marquinha no poste, joguei no lixo, queria mesmo era tacar fogo, mas é o que tem pra hoje.

Enquanto caminho, exercito o meu novo hobby, penso em novas e infalíveis formas de me livrar de seres humanos, de todos! “Rapá”, é capaz até que eu vire um grande cientista, já me vejo como o cara que inventou um repelente para gente.

Sigo na batida das minhas divagações. Do nada, vejo um carro, nada devagar, vindo em minha direção. Pense na porrada que tomei! Literalmente voei. A propósito, gosto de altura não. Vi toda minha vida passar na minha frente, vi todos os chatos insuportáveis que me incomodavam, vi e senti os cutucões dos inoportunos, era uma tortura escutar o replay de todas aquelas perguntas imbecis que já entraram pelos meus ouvidos, como a de uma mulher, entrando no elevador, que infelizmente eu estava dentro, pergunta: -vai subir? Mano do céu, nós estávamos no térreo. Não aguentei, saí e fui pelas escadas. Tudo foi acontecendo em câmera lenta, tipo aqueles filmes chatos, que por falta de história ficam enrolando, até que não vi mais nada, ou melhor, vi o nada, e o nada até que tem o seu encanto.

Acordei com uma mulher que se debruçava sobre mim para conectar algo em uma bolsa, acho que era soro, ela estava pendurada em uma haste de aço inoxidável ao lado da cama (essa haste me serve, dá para montar altas paradas com ela).

A mulher esbaforida era só peito, nunca vi tão grandes, o crachá pendurado no jaleco ficava a meio metro do corpo dela, olhei para baixo, vi que estava com sonda urinária (que delícia, não preciso me preocupar em urinar). No crachá dela estava escrito D. Maria I. [Deve ser Diaba de Maria Infeliz, (eu te batizo)]. Gritei por socorro, chamei a polícia, falei para tirar as mão de mim, gritei o mais alto que pude, até que apaguei novamente.

Dessa vez não teve reprise de nada, isso foi bom, reprise é chato. Acho que morri e fui para o inferno, inferno dos pandegos, tudo isso só pode ser piada. Alguém pese o meu coração e me mande para o rude e delicioso deserto do Saara.

Fui acordando, tudo foi ficando bem mais nítido naquela enfermaria superlotada, sentia perfeitamente os odores das secreções que saem dos seres humanos, não morri, aconteceu algo pior, estava sem poder impedir contato com seres humanos.

Aquele soro pingando desritmado me irritava muito, custava pingar direito? Nada poderia ser pior, até que piorou. Um grupo de residentes vem ao meu leito, eram irritantemente jovens, não dei bola, só fiquei escutando as baboseiras.

-Paciente foi atropelado, está com “politraumatudo” (ele fez essa piada com politraumatismo sim, infelizmente). Hemorragia subaracnóidea e seu prognóstico não evolui.

Ativei o meu chakra do ódio, tirei a força lá de onde nem sabia ter, pulei da cama, acertei os residentes com a haste de aço (eu sabia que seria útil.), não importava para onde, só fui, virei um super-herói, minha capa era a camisola escrito SUS e minha bunda de fora era minha kriptonita. As luzes de uma ambulância piscavam no fim de um corredor que dava para uma rampa, dei a sorte dela ainda estar ligada, haviam acabado de chegar com mais uma vítima desse mundo, na hora que abri a porta e comecei a entrar, um motorista mais atento me acertou com algo, nem senti nada, na verdade, pela primeira vez na vida estava completamente sem dor (depois vou precisar saber o que me aplicaram nesse hospital). Entrei e comecei a dirigir, um olho na estrada e o outro no retrovisor, vi os leds da fachada do hospital, estava escrito: Hospital Vila São José, e é claro que a metade do nome estava piscando e falhando, nada funciona direito nesse mundo.

A distância já era boa, longe o suficiente para lembrar que dirigir era um porre, ficar cambiando naquele “H” da morte era igual brincar de roleta-russa, sem tempo pra isso irmão! Muito inseguro e com medo de ter outro acidente, mas ainda sem poder parar, a solução foi rezar para que o Bom Jesus ajude esse descrente aqui, até que finalmente pude parar, deu tudo “certo”, comecei a andar com a minha bunda de fora, tô nem aí!

Vejo vindo em minha direção e em alta velocidade, algo muito mais perigoso que aquele carro, era a minha mãe, ela só pode ter colocado um GPS em mim, como conseguiu me achar aqui? E a danada sabia xingar igual gente grande (que orgulho), -mas, mãe! Falei vacilante. Ela logo tacou a mão na minha orelha para se antecipar na quebra de qualquer argumento. Ordenou um JÁ PARA CASA! Em uma sonoridade garrafal, e continuou com a ladainha, -onde já se viu, seu moleque, quatro meses sumido de casa, e ainda te encontro com a bunda de fora.

Agora eu só escutava: -Nem mais, nem menos, depois dos meus insistentes “mas mãe!”

Ela me sentenciou com um mês de castigo, não adiantava nada meus argumentos de já ser um homem-feito, os argumentos Dela eram insuperáveis, Ela manda e ponto final. Ficava dizendo para mim que eu precisava ser mais reservado, oi! Como assim? Resolveu que a pena seria cumprida no meu antigo quarto, que eu não sairia nem para comer, ela levaria tudo para mim, dessa forma eu iria aprende a me comportar (como eu poderia imaginar que a solução dos meus problemas estaria no local onde fui criado? Todos os meus jogos estão lá, meu búnquer amado!:).

Estávamos nós a caminho da minha clausura. Já chegando em uma região habitada, via as pessoas observando aquela cena dantesca, uma velhinha arrastando um marmanjão pela orelha, e certamente se perguntavam o porquê daquele sorriso de satisfação inebriante estampado no rosto daquele homem.

Sérgio Souza

Sérgio Souza
Enviado por Sérgio Souza em 08/06/2020
Código do texto: T6971557
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