E os dias eram assim...

Todos os dias, principalmente nesses de isolamento, ao abrir a janela do meu quarto de dormir, e olhar a paisagem que se descortina, vejo os fundos da casa que vivi nos primeiros dez anos de meu casamento. Lembro bem do dia que fui com minha mãe conhecer a casa e falar com seus donos, pois iríamos alugá-la. Depois levei o meu noivo, na época, e ele também gostou. Combinamos o valor do aluguel e soubemos que seríamos os primeiros moradores. Logo compramos os móveis e colocamos quadros e belos objetos de decoração. Tudo ficou muito bonito. E o mais importante, a casa ficava na rua paralela a da minha mãe, que havia ficado viúva há uns cinco meses e eu não queria que ela se sentisse sozinha longe de mim. Tudo perfeito!

Era um sobrado bem pequeno, mas de tamanho suficiente para abrigar um casal onde o amor e a alegria reinavam. Logo ao entrar, uma sala ampla, que se transformou em dois ambientes, sala de jantar com uma mesa redonda de cerejeira e cadeiras com assento de palhinha trançada e um móvel bem bonito, chamado de buffet. Logo em seguida, uma sala de estar, com dois sofás, uma mesinha de centro, e sobre outra mesinha lateral, um aparelho de som bem moderno. Os móveis todos de cerejeira, madeira muito usada na época. Saindo da sala, à esquerda estava a cozinha, bem pequena, decorada com móveis bonitos, uma pia, e acima dela uma pequena janela que dava para a área de serviço, esta também, bem pequena, onde se encontrava um tanque e ao lado colocamos a máquina de lavar. Não havia cobertura para dias de chuva, e então mandamos fazer, cobrindo somente uma parte da área. Havia um pequeno banheiro que servia de lavabo que ficava em um corredor interno que ia dar na área de serviço.

Paralelo a este banheiro havia uma escada que levava ao andar superior, onde havia dois quartos e um banheiro O maior quarto fizemos o do casal. Muito amplo. Ali colocamos armários, cama, criados-mudos, e uma mesinha onde ficou a televisão, que dava de frente para a cama. Todos os móveis de cerejeira, o que não poderia ser diferente. No quarto havia uma grande janela pela qual podíamos enxergar a paisagem, invertida da que vejo daqui do 7º andar do apartamento em que moro até hoje.

No quarto ao lado, bem menor, ficava uma estante de livros, uma bicama e uma mesinha com televisão. O banheiro, não muito grande, tinha as peças necessárias, e uma pequena janela.

Foram dez anos de muita união, muito amor, muitas risadas, pois meu marido era muito engraçado. Ele trabalhava fora o dia todo e eu no 1º ano de casada optei em trabalhar somente meio período, o da tarde. Pela manhã cuidava da minha primeira casa com muito carinho e zelo, e enquanto limpava, ouvia muitas músicas, em discos de vinil de diferentes cantores, alguns mais antigos como Ângela Maria, Nelson Gonçalves, e outros. Até fado eu ouvia, pois sempre gostei deste gênero musical, num disco de Amália Rodrigues, cantora portuguesa muito famosa. As músicas mais modernas eu ouvia pelas fitas-cacetes que tinha, geralmente gravadas de discos do meu irmão. Colocava sempre em volume alto e junto eu cantava. A rua era bem estreita e algumas vizinhas me diziam que ficavam em suas janelas ouvindo as músicas que tocavam lá em minha sala. Deixava o jantar pronto antes de ir trabalhar. Confesso que sofri muito nos primeiros meses para fazer a comida, pois antes do casamento, praticamente, não sabia cozinhar. Fui aprendendo às duras penas, com um caderno ao lado, no qual escrevi muitas receitas ditadas pela minha mãe, logo que voltei da viagem de lua-de-mel. Cozinhava, cantava e fumava, um tanto apreensiva, e fazia os afazeres de casa com muito prazer. Foram dias de alegria, de amor e de esperança de um dia termos a casa própria, apesar de curtirmos muita essa em que morávamos. Tudo era novo para mim, pois sempre trabalhei fora em dois empregos, o dia todo, e morava com meus pais. De limpar casa e cozinhar, sabia quase nada.

Minha mãe que morava perto, quase todo dia ia até lá e cuidava de passar nossas roupas. Eu e meu marido guardávamos os carros na casa dela, pois em nosso sobrado não havia garagem. Ao chegar do serviço sempre ficava um tempo com ela, e todo final de semana almoçávamos em sua casa e ali passávamos boas horas. Nos domingos a tarde, muitas vezes, voltávamos para casa para fazer amor. Ah que delícia! Havia muito desejo de ficarmos coladinhos, abraçados, fazendo amor e trocando juras de amor. Foram dias de muita alegria, de prazer e de esperança. A juventude, já caminhando para uma idade mais madura, pulsava em nós. Após o primeiro ano fiquei grávida, mas no terceiro mês de gravidez, em uma tarde de domingo, meu filhinho ou filhinha partiu, e o sangue que escorria de meu ventre, acabou levando a possibilidade de ter filhos, e nunca mais engravidei. Muita dor, muito sofrimento, que o tempo acabou por amenizar, porém de nunca aceitar. Foram anos de tratamento. Não consegui!

Até que depois de dez anos compramos nosso apartamento, onde moro até hoje, bem perto da primeira casa e da casa de minha mãe. Que felicidade! Porém, nunca igualada àquela que vivemos em nossa primeira casa de aluguel.

Entre namoro e casamento foram 34 anos de convivência. Mas, a vida, esta vida vivida, e muitas vezes sofrida, foi nos colocando à prova, até que chegou o dia do divórcio. Desses anos todos de convivência, hoje tenho certeza, os mais felizes da vida de casal foram aqueles em que moramos na casa alugada, na Rua Dacache, número 25.

E hoje em dia, quando pela manhã, abro a janela de meu quarto de dormir, e vejo essa primeira casa de casada, pintada de amarelo queimado e janelas marrons, passa um filme em minha cabeça, e a saudade daquele tempo bate mais forte, e as lágrimas teimam em cair, embaçando minha visão, e apertando meu peito, já cansado de viver um presente tão distanciado daqueles dias de simplicidade, dias felizes que marcaram nossas vidas, e que se dissiparam, provocando em mim, esse sentimento de solidão.

MiriamS
Enviado por MiriamS em 13/06/2020
Reeditado em 01/08/2021
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