Isolamento sociocultural

No início da pandemia, ouvia os relatos dos italianos que entravam em quarentena. Vivi alguns anos na Itália, fui casada com um italiano e tenho um filho morando lá desde o ano passado. Esses primeiros relatos me soavam assustadores. Meu filho lá, exposto a este vírus, com tantos sonhos e planos que precisaram ser adiados era algo que me angustiava. Porém, em momento algum me parecia uma realidade que, em breve, também eu estaria vivendo.

Quando entramos em quarentena aqui no Brasil, embora com “um quê de férias” para muitas pessoas, levei a sério e entendi que era necessário. Aparentemente não me incomodou o fato. Entretanto, a falta de entendimento das pessoas, isto sim, me incomodava bastante. A angústia dos números de casos diários seguido dos números de mortos me assombrava. O medo e a impotência aos poucos tomavam conta. Por outro lado, como professora das séries iniciais de uma escola pública, comecei a pensar em como poderia contribuir para amenizar esta situação para os meus pequenos estudantes do 1º ano. Mal havíamos começado o processo de alfabetização e eu não conseguia imaginar como essas crianças poderiam ter acesso a conteúdos on line ou, pior ainda, como eles “aprenderiam” alguma coisa desta forma. Iniciou-se, então, uma discussão bastante acirrada em relação à modalidade “EAD em tempos de pandemia”. Não diferente de outras instituições, a equipe docente da minha escola também. Tentamos de todas as maneiras manter um debate coerente e coeso a respeito do assunto desde o acesso aos conteúdos até a efetiva eficácia deste tipo de abordagem em meio a tantos problemas que pandemia acarretou. Sem sucesso. Paralelo a isto, minha filha, estudante do ensino médio estadual, também estava às votas com tarefas e atividades diárias. Entre dividir o tempo e o notebook, buscávamos cumprir com o exigido. Já sentia na pele aquilo que a pandemia trazia junto com ela: a angústia frente à doença, a quantidade de pessoas mortas diariamente, pessoas próximas com covid (e algumas acabaram morrendo), problemas financeiros, filhos passando pelos mesmos problemas, meu filho mais novo no epicentro europeu da pandemia, exigências do trabalho e incertezas da faculdade, enfim, não agüentei. Sofri um infarto na noite de páscoa, aniversário do meu filho mais velho. Uma data muito significativa. Cheguei à emergência do hospital às 03 horas 30 minutos da manhã. Tive sorte: o hospital estava vazio e logo fui atendida. Rapidamente fiz os exames necessários que constataram aquilo que eu temia: realmente eu havia infartado. Daí em diante, fui colocada em monitoramento e, mais tarde, transferida para a UTI de outro hospital. Fiquei totalmente sem comunicação com minha família e amigos. A primeira semana foi de muita insegurança, apesar de estar sendo bem cuidada, a sensação que eu tinha era de estar isolada daquele mundo de quarentena. Não ouvia nenhuma notícia de fora, as visitas eram restritas e rápidas, não via ninguém que não fosse médico ou enfermeiro e uma senhora intubada à minha frente. Dias depois, recebi a informação de que eu seria transferida para a enfermaria. Estranhamente fiquei angustiada. O medo de estar menos assistida tomou conta de mim. Uma enfermeira disse que eu deveria ficar feliz, pois, significava que eu estava melhorando. Apesar disso, eu estava triste por sair da UTI e ir para uma ala do hospital em que eu sabia que não seria tão “cuidada e vigiada” quanto estava sendo ali.

Chegando à enfermaria percebi na prática o quanto a desigualdade social interfere na situação de emergência de saúde. Os leitos ladeados não respeitavam o distanciamento, os acompanhantes ajudavam outros pacientes, os enfermeiros não trocavam de roupa para tratarem outros pacientes. Os cuidados com contágio eram absolutamente ignorados, enquanto que, em hospitais particulares a coisa era bem diferente.

Durante o meu isolamento do isolamento, pude ouvir relatos indignantes sobre como o governo estava “selecionando” os profissionais de saúde para trabalharem com os enfermos. Seria uma espécie de “boi de piranha” urbano. Uma linha de frente que, literalmente, seria “sacrificado” deixando-os a mercê da própria sorte. Sórdido para dizer o mínimo. Os médicos e enfermeiros fazendo uma espécie de loteria com o numero de mortos me soava surreal. (Acredito que pensassem que eu estivesse em coma para falarem, assim, tão abertamente sobre certos assuntos!). A audição não me ajudava a melhorar. Longe disso, me deixava, pelo menos, mais agitada, angustiada e apavorada. No meu tempo de enfermaria, mudaram os interlocutores: não ouvia mais o relato dos médicos e enfermeiros, mas dos pacientes. Minhas “colegas” da enfermaria ao lado faziam questão de contarem as “novidades” num tom acima do necessário. Ouvia-as claramente todas as manhãs com as noticias das comunidades que elas moravam: “Fulano foi internado”, “Ih!! Como vai ser agora?”, “Sabe cicrano, vizinho da beltrana? Então, a vó dele está mal.”, “Conhece o filho do Zé da barraca?? Foi preso. De novo.” E por ai vai. Em um desses dias fui até lá dar rosto às vozes que eu ouvia. Soube, além das notícias do dia, que muitas mulheres estavam internadas ali aguardando exames. (Como assim??) algumas estavam há pelo menos dois meses aguardando um exame do coração, uma tomografia ou uma ressonância. Disseram que, se esperassem em casa nunca fariam o exame. Por isso, ficavam ali ocupando um leito que muitas vezes poderia servir para alguém que realmente precisasse. Absurdo dos absurdos é pensar que ali eram apenas seis. Quantas pessoas estão, neste momento, na mesma situação? Por que o governo não se organiza para atender a essas pessoas de modo que os hospitais não fiquem sobrecarregados? O SUS é um sistema maravilhoso, mas precisa ser gerido por pessoas comprometidas com o bem da população, com políticas públicas de saúde coletiva, medicina preventiva, pesquisa cientifica, reformas dos hospitais, formação qualificada, educação continuada para os profissionais de saúde, entre tantas outras coisas que poderíamos elencar aqui, mas que não vêem ao caso neste momento.

Enfim, com esta consciência entrei num processo de depressão e a minha meta era sair dali o mais rápido possível. Dois dias depois, avisaram-me que eu seria novamente transferida. Desta vez para passar por um procedimento cirúrgico. Um alívio tomou conta de mim: apesar de ter que passar por um procedimento no coração, o que é no mínimo arriscado, eu iria embora daquele lugar. Mais dois dias e eu estava a caminha de Vassouras. Segui numa UTI móvel acompanhada de uma paramédica, um enfermeiro, um motorista e minha comadre. No hospital universitário uma equipe me recebeu e o procedimento levou menos que 30 minutos. Tudo muito rápido e muito eficiente. O equipamento de ponta e as enfermarias e leitos tão bem organizados e limpos me levaram a pensar porque os hospitais públicos não são assim. Atendimento de qualidade, rápidos e eficientes. Qual é a dificuldade que os governos encontram para dar um mínimo de dignidade para a população.

No dia seguinte recebi alta. O próximo passo era repouso e voltar às minhas atividades. Nesta última semana iniciei meu retorno às minhas atividades. Continuamos no isolamento social. A pandemia continua matando. Os problemas financeiros pioraram. A Itália continua com suas altas taxas de mortalidade pelo Covid. Meu filho ainda não consegue voltar para o Brasil. Minha escola continua insistindo em atividades inúteis on line. Estou enrolada com a faculdade até o último fio de cabelo. O povo não respeita o isolamento. O governo não respeita o povo. E o número de mortos continua crescendo. A desigualdade social é cruel e avassaladora. É nela que o dinheiro não chega, nem a informação, nem a educação.

Enfim, pouca coisa mudou e meu coração continua partido. Não! Não sofrerei outro infarto. Estou sendo bem cuidada, graças a Deus! Porém, sinto uma tristeza profunda por aqueles que se foram, por aqueles que não entendem, por aqueles que não querem saber!

Fica, porém, a reflexão: a que ponto a desigualdade social interfere no controle da pandemia?