Dezenove minutos

Minha mãe foi uma daquelas mulheres que, durante a década de 1990, decidiu largar o emprego para cuidar das crianças e do lar. E o fez com o afinco que, caso aplicado à vida corporativa, resultaria em uma meteórica carreira até CEO. Nesse contexto, cresci em uma casa que era dirigida com o rigor esperado em uma multinacional alemã. Aliás, talvez as multinacionais alemãs não tenham políticas tão rigorosas em relação à ingestão de manga seguida de leite.

Tudo era regido com o mais atencioso dos detalhes. Despesas com mesadas eram auditadas por uma Big four. Pedidos de brinquedo eram analisados pela diretoria de compras. Disputas entre irmãos eram resolvidas por meio de arbitragem. Se pisasse na cozinha enquanto o chão estava secando, pena de morte.

Dentre esses detalhes, havia o complexo processo de lavagem de roupas. Delicadas em um ciclo, pesadas noutro. Métricas específicas de sabão em pó e amaciante para cada tipo de roupa. E jamais, jamais, jamais misture roupas brancas com as coloridas.

Não minto, sempre me impressionei com essa habilidade. Assim como um estudado sommelier que, ao cheirar um vinho – ou, como dizem, realizar o “exame olfativo” – sabe o teor alcoólico, safra e o prato perfeito para pareá-lo, minha mãe, no simples tocar de uma roupa sabia prontamente o tratamento perfeito para deixa-la como nova. Duas colheres de bicarbonato de sódio, meia colher de sabão em pó, deixar de molho por 4 horas e um ciclo médio. Ah, a perfeição.

Aos dezenove anos fui morar sozinho sem saber nada. Nem lavar um vinho e nem qual era a safra da minha camisa.

Até que ela veio.

Era uma Brastemp novinha em folha. Potente. Com capacidade de 10kgs e 12 velocidades diferentes. Se fosse um carro de fórmula 1, seria uma Ferrari. Mas pilotada pelo estagiário mais novo da escuderia.

Talvez por rebeldia, ou por preguiça mesmo, conscientemente desobedeci a todas as instruções de minha mãe. A segregação havia acabado. Agora roupas brancas e coloridas, pesadas ou delicadas, muito sujas ou muito limpas, eram todas iguais. Seu libertador havia chegado. Lá estava eu, o próprio Nelson Mandela da área de serviço.

Todo esse desprendimento não foi diferente na hora de escolher a opção da minha potente máquina. Eram 12 modalidades, mas jamais tive um segundo de dúvida. Lá estava ela: “Rápido – 19 minutos”. E foi amor ao primeiro ciclo.

A especificidade daquele ciclo sempre me intrigou. “19 minutos”. Não vinte. Dezenove. Precisos dezenove. Brada-se “dezenove” com a vergonha de quem tentou desenvolver um ciclo de quinze minutos e falhou miseravelmente, mas, ainda sim, conseguiu algo melhor do que intoleráveis vinte minutos.

E não há demérito nenhum nisso. Se alguns anos atrás nos sentíamos no auge da tecnologia pela possibilidade de se chamar um táxi através de um telefone fixo, hoje cancelamos um Uber se nos deparamos com a deprimente notícia de que ele chegará em sete minutos. Cinco são toleráveis. Sete já é uma eternidade. Um desrespeito para com o consumidor. Na verdade, você bem sabe que deveria ter pedido seu Uber antes de começar a se vestir, mas, se assim o fizesse, ele chegaria em dois minutos. Não adianta, o aplicativo sente o seu medo. Você jamais vencerá.

Aquele ciclo mudou minha vida. Esqueça Nelson Mandela. A despeito de sua inquestionável contribuição para a sociedade, ele é humano demais. Alço-me ao nível de deus grego da área de serviço. Eu sou o senhor do meu tempo. Eu sou Cronos. Cronos de camisetas suficientemente limpas. Para mim, é claro. Não aos olhos criteriosos de mamãe.

Aquele ciclo rápido e eu vivemos felizes por 10 anos. Jurei fidelidade a ele. Na alegria e na tristeza. Na mancha de graxa ou bolonhesa. Jamais cogitei olhar para outro ciclo. Recentemente comemoramos Bodas de Zinco. A ocasião pediu algo especial. Abri um Pêra-Manca Tinto de 2005 e o derramei em minha mais branca camisa para homenagear meu grande amor. Celebramos intensamente por, 19 minutos. Ah, nesses 10 anos eu aprendi uma coisa ou outra sobre vinho. Inclusive a falar “exame olfativo”. Graças, é claro, à minha querida Brastemp. Aquele um minuto que eu ganhava toda semana, ao longo de dez anos, converteu-se em mais de oito horas. Tempo suficiente para se dedicar um pouco à enologia.

Mas todo relacionamento longo invariavelmente é posto à prova. Foi aí que a outra chegou. Não outra máquina. Jamais. Outra mulher. A máquina entendia meus relacionamentos com mulheres. Não ligava. Aos seus olhos, isso talvez até a fizesse mais útil. Quem mais cuidaria das manchas de batom nas camisas ou das inevitáveis manchas de molho resultantes da tentativa de impressioná-la na cozinha?

Mas a verdade talvez não fosse recíproca.

Comecei a sair com uma moça e, em um belo dia, iniciei mais um ciclo rápido enquanto nos falávamos ao telefone. Aviso-lhe que estava a lavar roupas, talvez na esperança de soar um pouco prendado. Todavia, após 19 minutos de divagações sobre a vida, cometo um erro ao compartilhar com a moça que meu ciclo rápido havia chego ao fim e minhas roupas estavam, mais uma vez, satisfatoriamente limpas.

“- Como assim, dezenove minutos?” – Questionou enquanto acendia um cigarro.

“- É, dezenove minutos.” – Respondi balbuciante enquanto me indagava se eu teria direito a um advogado

“-Dezenove minutos, Rodrigo?!” – Reiterou, batendo na mesa.

“- Sim, sim... na verdade nem sei direto ser são dezenove, está mais para vinte, quase trinta minutos” – Elucubrei envergonhado por trair a precisão dos engenheiros da Brastemp, na esperança de que em breve o Good Cop entrasse na minha sala de interrogatório telefônico.

Mas ninguém viria. Estava a aprender ali então que aparentemente roupas demandam uma atenção mais especial do que aquele ciclo poderia me dar. Lavagens distintas. Horas de dedicação. Ciclos específicos. Segregação de roupas por cor. O apartheid do algodão estava prestes a voltar.

Talvez a única pessoa que desprezasse mais o meu tão amado ciclo de 19 minutos do que essa moça seja o ex-engenheiro da Brastemp que a despeito de seus mais genuínos esforços conseguiu apenas programar um ciclo de 20 minutos.

Imagino-o hoje, desempregado, vivendo nas ruas, amargurando a dor dessa derrota e jurando vingança contra seu nêmesis. Bebendo em um balcão de bar escuro ao lado de Roberto Baggio, do elenco do Bayern Munique que jogou a Liga dos Campeões de 1998 e todos aqueles que sofreram grandes derrotas apenas por causa de um minuto. Chamam o garçom e pedem mais uma cerveja enquanto tramam. “Um minuto”, responde o novato atendente, que acabou de perder os 10%.

Ainda não entendo como pode uma mulher recriminar um homem por não dedicar horas a um trabalho que ele acha que pode resolver satisfatoriamente em apenas 19 minutos. Agora, pensando bem, talvez eu não tenha entendido a indireta. Bom, terei bastante tempo para refletir sobre isso enquanto espero meu Uber na portaria. Sério, sete minutos é um desrespeito....