Quarenta dias e quarenta noites

Se 2020 fosse um livro bíblico, seria o Apocalipse. As trombetas do inferno hoje soam uma sinfonia assustadora: CORONA VAIRUS! CORONA VAIRUS! A Besta assumiu a forma de um messias. Um Messias que não faz milagre. E daí? As pragas agora têm conta no Instagram e patrocinadores, e nos ensinam que tudo tem seu lado bom, inclusive uma pandemia assassina que mata pobre na fila do respirador ou da Caixa Econômica Federal. Gratidão, coronavírus.

Gosto de usar metáforas bíblicas, e, principalmente, de encontrar simbologias no texto sagrado. Na história de Noé, por exemplo, depois de quarenta dias e quarenta noites em isolamento dentro de uma arca, uma pomba branca trouxe no bico um ramo de oliveira e uma promessa: “Vocês em breve vão sair da quarentena”. Mais de dois mil anos depois, a história se repete no Noé-Verso. Em vez da pomba branca, um morcego preto, asqueroso e doente, traz na boca um vírus e um prenúncio: “Vocês em breve vão entrar em quarentena”.

Fui a primeira a cumprir a profecia do mensageiro do caos. Mas fui presenteada, já na primeira semana da quarentena, com os sintomas típicos do vírus: febre alta, dor no corpo e medo de morrer. Completamente fora de moda, posso ter sido uma das últimas vítimas de uma doença obsoleta, a dengue. Sim, o Aedes Aegypti não respeitou o isolamento e fez uma pool party no meu vaso de violetas. Mosquito desgraçado. Ele só não aprendeu a transmitir o corona porque não muda o mindset e não investe em rebranding. Tá moscando.

Muitos copos d’água depois, já recuperada, o tal do novo normal bateu à minha porta. Entrou sem pedir licença, deixou os sapatos no capacho, lavou as mãos e se instalou na sala, deixando o formato da bunda no sofá. De presente, trouxe a desculpa inquestionável que eu sempre quis para adiar compromissos sociais e uma nova obrigação: você precisa encontrar algum propósito nessa merda toda. Eu sou formada em Letras. Não tem como construir um respirador usando miçanga, dicionário de regência verbal e uma coruja de Durepox. Eu me senti completamente inútil, mas via que o propósito podia morar nos detalhes.

O problema é que eu achava estético demais fazer ioga, crochê ou um samba on-line com o pessoal do DCE. Sentia culpa só de pensar que eu estaria ocupando meu tempo com meditação enquanto a linha de frente corria risco de vida, ou enquanto pessoas estavam ameaçadas de perder o emprego, não tendo nem o que comer. Do outro lado, adeptos do goodvibismo, com a voz mansa e sotaque da Mooca, diziam que o isolamento estava sendo ótimo para trazer conexão, espiritualidade, aprendizado e descobertas. E o espectro da culpa voltava a assombrar meus pensamentos: Será mesmo que esse vírus assassino veio só para eu aprender crochê?

Não me parecia razoável sob nenhuma ótica. Então, fiz aquilo que não me despertava remorso: nada. Passava os dias como um pepino, vegetando. Assistia a vídeos de gato, bicho-preguiça, pandas no escorregador e, de alguma forma, isso parecia bastar. Só com a insônia, crises de ansiedade e novas dores pelo corpo percebi que, talvez, não seria tão egoísta assim deixar pequenos prazeres orbitarem meu próprio umbigo. Exercícios e algum hobby eram serviços essenciais à minha saúde mental. Mas durou menos que o mandato do Nelson Teich. Com meu pai tendo que voltar ao trabalho de transporte público, possivelmente com milhares de passageiros nocivos e invisíveis que sequer pagavam passagem pra poder ocupar os assentos, catraca, janelas e barras, esses rituais foram sendo substituídos ou adaptados frente às necessidades e conjunturas da vida real e off-line.

A meditação até que começava bem, e, quando eu estava prestes a equilibrar os chakras, o vidro da janela do meu quarto começava a tremer quando a sétima ambulância do dia passava voando pela minha rua com a sirene alta anunciando mais uma provável vítima em Osasco. Não tem como atingir nirvana nenhum assim, nesse desespero do caralho. Os exercícios e alongamentos até me faziam bem, mas acabei substituindo-os pela subida de oito lances de escada toda vez que voltava do mercado e me deparava com os elevadores ocupados por potenciais transmissores de vírus, que um dia já chamei de vizinhos. Crochê eu adaptei. Abandonei as roupinhas de liquidificador e passei a costurar máscaras de pano. Prioridades. E eu, que jurei que se tivesse que lavar sacola de mercado preferia morrer tossindo, hoje uso Lysoform até como sabonete íntimo.

Parecia bem mais natural para as mães de planta da Vila Madalena fazer mergulhos espirituais. Eu só conseguia mergulhar minhas roupas em água sanitária e lágrimas. Enquanto uns passavam pano pra participante de Big Brother, eu passava pano com álcool em saco de arroz. Se me acalmava durante o dia com alguns minutos de desenho animado, à noite a abertura do JN me fazia estremecer. Se planejava arrumar a gaveta de meias e desengavetar projetos durante o dia, à noite eu me sentia culpada por só ter conseguido escrever meias palavras. Quando num sábado estava feliz, pulando na sacada com a apresentação de meu vizinho DJ, chorava quando percebia que o sucesso que estava embalando a minha alegria era “This is the Rhythm of the Night”, da banda CORONA.

Sempre achei que quem me impedia de viver uma vida plena e harmoniosa era a falta de tempo. Hoje desconfio que seja eu. Tenho tempo de sobra, que preencho com preocupações, vícios, paranoias e angústias profundas demais para que eu tenha vontade de aprender a tocar violão. Não quero cair no erro de julgar quem consegue encontrar significado neste pandemônio, muito menos questionar o bem-estar real de quem conseguiu plantar uma hortinha de tomate no quintal, mas minha válvula está emperrada, incapaz de dar vazão à fossa que transborda em mim. Queria garantir a vida dos que amo. Queria um impeachment. Queria o controle do Adam Sandler. Queria passar por tudo sem ter que aprender nenhuma lição. Mas parece que é justamente sobre isso. Posso vestir uma máscara, mas ela não vai me proteger do que me infecta. Posso lavar minhas mãos, mas minha responsabilidade continuará nelas.

Ao que tudo indica, ainda terei muito mais do que quarenta dias e quarenta noites para aprender a sobreviver a este dilúvio dentro desta arca, aguardando pacientemente a chegada da pomba ou, na pior hipótese, do morcego. E como boa osasquense, tenho fé que virá a pomba.

Vanessa A
Enviado por Vanessa A em 09/07/2020
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