Aroma de duas vidas

A fumaça dançava no ar fios de véus que se misturavam às linhas das mãos octogenárias. O cheiro perfumava a memória e acordava detalhes de duas vidas. Estava só, acompanhada apenas do café, mas não se sentia só.

Olhou as pequenas bolhas explodindo no pó escuro e escutou o som da bebida quente vencendo os furos do coador e caindo na chaleira. Eram seus interlocutores. Pareciam compreendê-la. A conversa, cúmplice e triste, fez com que chorasse seu melhor sorriso.

Abriu o armário e tirou de lá um bule e duas xícaras de porcelana com suportes e pires prateados. Uma folha dourada embelezava o bule. Demorou longos segundos admirando os objetos, usados somente em ocasiões especiais.

Com velocidade no limite das forças de suas pernas, foi até o quarto e, de um cantinho pouco visitado do guarda-roupas, tirou uma bela toalha de crochê. Arrastou passos sem pressa até a copa. Limpou a mesa e a forrou.

Avaliou. Gostou, mas nem tanto. Faltava algo. Sorriu ao se lembrar da roseira branca. Com carinho de mãe, olhou para a flor, que estava em um va-so, na varanda. Buscou-a e a colocou no centro da mesa. “Lindo!” – aplaudiu seu pensamento.

A decoração principal viria a seguir: muitas fotos. Estavam todas organizadas na gaveta da estante. Retirou-as com cuidado e as levou para a mesa. “Perfeito!” – comemorou em seu íntimo.

Da geladeira, tirou um pequeno bolo de coco, comprado na véspera, e o pôs sobre a mesa. Cheirava bem. Mistura gostosa com outros odores: rosas, a manhã e o café.

Contemplou o mundo em sua volta e fechou os olhos para conduzir aquela imagem, com todas as suas fragrâncias, a seu pensamento e ver suas ideias brincar com algumas boas lembranças.

Duas velas, nas formas de “zero” e “seis” e com detalhes semelhantes a fios de ouro, aguardavam, ansiosas, por aquele momento. Estavam seguras, enroladas em um lenço, no fundo da gaveta do armário da cozinha. Foram compradas há mais de mês, especialmente para aquele dia. Fincou as velas no bolo e se permitiu algumas lágrimas.

Transferiu o café, quente e forte, da chaleira para o bule de porcelana, que já estava devidamente organizado sobre a mesa. Sentou-se, por fim, e olhou as fotos. Eram histórias em imagens, com abraços, beijos, sorrisos, brincadeiras, viagens, sofrimentos, lágrimas, leito de hospital... Duas vidas pela metade em uma vida completa. Em todas as fotos, ela e sempre o mesmo homem.

Teve uma vida tão longa quanto pode alcançar a felicidade. A maternidade foi adiada ano após ano, até ficar no passado. A ausência de filhos não apequenou sua alegria, que bebia e comia amor. Amou muito e foi amada também. Isso bastou. Na verdade, extrapolou o basta.

A família era ela e o marido, que lhe foi roubado pelo câncer. A morte foi acontecendo aos poucos e se completou numa noite chuvosa do últi-mo dezembro. Faltavam dois meses para as bodas de diamante.

Durante quase sessenta anos, foram muitas as rotinas, mas todas tinham o mesmo início: café forte, risadas e olhares que diziam tudo, que diziam mundo. Tiveram momentos tristes, mas até nesses momentos, a tristeza era alegre.

Acendeu as velas e, com certo constrangimento, sussurrou parabéns desafinado, batendo palmas sem som. Cortou o bolou. Despejou café em sua xícara e estranhou que a outra permanecia vazia. Encheu-a também.

O aroma da manhã a abraçou de memórias. Viu o marido na sua frente, sorrindo, sem a dor da doença. Na paz daquele silêncio, o café lhe tocou os lábios e ela sentiu um beijo doce, quente e matinal.

Três palavras se apressaram para sair daquele velho coração e festejar as bodas de diamante. Com o gosto da bebida enchendo de sabor aquele instante, ela disse com a mais profunda verdade:

- Eu te amo.

Osvaldo Júnior
Enviado por Osvaldo Júnior em 12/07/2020
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